São Paulo, quinta-feira, 01 de janeiro de 2009

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OPINIÃO

Acordo tem valor simbólico e alcance político

JOSÉ LUIZ FIORIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O português é a única língua com estatuto de idioma oficial em vários países que tem duas ortografias reguladas por lei: uma utilizada no Brasil e outra, em Portugal e nos demais países lusófonos.
Línguas como o espanhol e o francês, que são faladas em diversos países, têm uma única ortografia. Alguém poderia dizer que isso não é verdade porque, em inglês, também há dupla ortografia: por exemplo, centre e center; colour e color, analyse e analyze; catalogue e catalog. Entretanto, a situação do inglês é muito distinta da do português, porque ele não tem ortografia fixada em lei. Ela é regulada pela tradição, que está registrada nos grandes dicionários. Isso quer dizer que, embora existam grafias preferenciais em países como a Inglaterra e os Estados Unidos, as duas formas são consideradas corretas.
Para pôr fim a essa situação de duplicidade de ortografia, que tem raízes históricas profundas, foi assinado um acordo de uniformização ortográfica entre os oito Estados nacionais da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). Após muita discussão, essa convenção foi ratificada pelos parlamentos de diversos países, entre os quais Brasil e Portugal, e entra em vigor em nosso país hoje. A discussão sobre o Acordo tem-se baseado em diversos equívocos. Em primeiro lugar, não se trata de uma unificação da língua, mas da ortografia.
A língua é um fato social intrinsecamente variável: na pronúncia, no vocabulário, na morfologia e na sintaxe. Varia de uma região para outra (mesmo dentro de um país), de um grupo social para outro, de uma geração para outra, de uma situação de comunicação para outra. Não se pode unificar a língua. Já a ortografia é o conjunto de convenções que regula a representação dos sons da fala na escrita, é o conjunto de regras que determina como se escrevem as palavras. É isso que está sendo uniformizado.
Afirma-se que a reforma é tímida, é "meia-sola", que seria necessário fazer uma mudança ortográfica profunda. Na verdade, a rigor, não se trata de uma reforma ortográfica, mas de um acordo de unificação ortográfica. Por isso, ela incide apenas sobre os aspectos divergentes das duas ortografias. Além disso, uma alteração de grande alcance não é mais possível, porque, como praticamente toda a população está alfabetizada e faz uso intensivo da escrita, seria um custo enorme levar todos a reaprender uma ortografia completamente nova. É preciso considerar ainda que uma modificação ortográfica radical condenaria, em pouco tempo, todo o material gráfico armazenado à obsolescência, pois seria preciso um preparo específico para lê-lo.
Diz-se que não houve de fato uma unificação, porque se aceita o princípio da dupla grafia em alguns casos: por exemplo, econômico/ económico; caratê/ caraté; facto/ fato; concepção/ conceção. Essa afirmação é um erro porque as duas grafias passam a ser corretas em todos os países lusófonos. Com muita sabedoria, unificou-se, respeitando-se a diversidade de pronúncia refletida em formas históricas de grafar. Além disso, o princípio da dupla grafia não é invenção do acordo, pois ele já existe no sistema ortográfico brasileiro: aceitam-se como corretas, por exemplo, as formas contacto e contato, secção e seção, sinóptico e sinótico, cotidiano e quotidiano. O acordo é tecnicamente imperfeito. Apesar disso, sou favorável a ele por seu alcance político. A língua, além da função comunicativa, tem funções simbólicas: representa a nação, é instrumento de resistência contra a dominação estrangeira, etc. Como diz um de seus considerandos, o acordo "constitui um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua". É nesse contexto que deve ser visto, em seu valor simbólico. Visa a afirmar, por meio da unificação ortográfica, uma unidade linguística de base, que emerge de uma grande diversidade e que é o símbolo da união dos povos da CPLP.


JOSÉ LUIZ FIORIN é professor do Departamento de Linguística da USP e membro da Comissão Nacional de Língua Portuguesa do MEC


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