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OPINIÃO
Acordo tem valor simbólico e alcance político
JOSÉ LUIZ FIORIN
ESPECIAL PARA A FOLHA
O português é a única língua
com estatuto de idioma oficial
em vários países que tem duas
ortografias reguladas por lei:
uma utilizada no Brasil e outra,
em Portugal e nos demais países lusófonos.
Línguas como o espanhol e o
francês, que são faladas em diversos países, têm uma única
ortografia. Alguém poderia dizer que isso não é verdade porque, em inglês, também há dupla ortografia: por exemplo,
centre e center; colour e color,
analyse e analyze; catalogue e
catalog. Entretanto, a situação
do inglês é muito distinta da do
português, porque ele não tem
ortografia fixada em lei. Ela é
regulada pela tradição, que está
registrada nos grandes dicionários. Isso quer dizer que, embora existam grafias preferenciais
em países como a Inglaterra e
os Estados Unidos, as duas formas são consideradas corretas.
Para pôr fim a essa situação
de duplicidade de ortografia,
que tem raízes históricas profundas, foi assinado um acordo
de uniformização ortográfica
entre os oito Estados nacionais
da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).
Após muita discussão, essa
convenção foi ratificada pelos
parlamentos de diversos países, entre os quais Brasil e Portugal, e entra em vigor em nosso país hoje.
A discussão sobre o Acordo
tem-se baseado em diversos
equívocos. Em primeiro lugar,
não se trata de uma unificação
da língua, mas da ortografia.
A língua é um fato social intrinsecamente variável: na pronúncia, no vocabulário, na
morfologia e na sintaxe. Varia
de uma região para outra (mesmo dentro de um país), de um
grupo social para outro, de uma
geração para outra, de uma situação de comunicação para
outra. Não se pode unificar a
língua. Já a ortografia é o conjunto de convenções que regula
a representação dos sons da fala na escrita, é o conjunto de regras que determina como se escrevem as palavras. É isso que
está sendo uniformizado.
Afirma-se que a reforma é tímida, é "meia-sola", que seria
necessário fazer uma mudança
ortográfica profunda. Na verdade, a rigor, não se trata de
uma reforma ortográfica, mas
de um acordo de unificação ortográfica. Por isso, ela incide
apenas sobre os aspectos divergentes das duas ortografias.
Além disso, uma alteração de
grande alcance não é mais possível, porque, como praticamente toda a população está alfabetizada e faz uso intensivo
da escrita, seria um custo enorme levar todos a reaprender
uma ortografia completamente
nova. É preciso considerar ainda que uma modificação ortográfica radical condenaria, em
pouco tempo, todo o material
gráfico armazenado à obsolescência, pois seria preciso um
preparo específico para lê-lo.
Diz-se que não houve de fato
uma unificação, porque se aceita o princípio da dupla grafia
em alguns casos: por exemplo,
econômico/ económico; caratê/ caraté; facto/ fato; concepção/ conceção. Essa afirmação
é um erro porque as duas grafias passam a ser corretas em
todos os países lusófonos. Com
muita sabedoria, unificou-se,
respeitando-se a diversidade de
pronúncia refletida em formas
históricas de grafar. Além disso, o princípio da dupla grafia
não é invenção do acordo, pois
ele já existe no sistema ortográfico brasileiro: aceitam-se como corretas, por exemplo, as
formas contacto e contato, secção e seção, sinóptico e sinótico, cotidiano e quotidiano.
O acordo é tecnicamente imperfeito. Apesar disso, sou favorável a ele por seu alcance
político. A língua, além da função comunicativa, tem funções
simbólicas: representa a nação,
é instrumento de resistência
contra a dominação estrangeira, etc. Como diz um de seus
considerandos, o acordo "constitui um passo importante para
a defesa da unidade essencial
da língua". É nesse contexto que
deve ser visto, em seu valor
simbólico. Visa a afirmar, por
meio da unificação ortográfica,
uma unidade linguística de base, que emerge de uma grande
diversidade e que é o símbolo
da união dos povos da CPLP.
JOSÉ LUIZ FIORIN é professor do Departamento de Linguística da USP e membro da Comissão
Nacional de Língua Portuguesa do MEC
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