São Paulo, terça-feira, 01 de março de 2011

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JAIRO MARQUES

Com as rodas no samba


A cada vez que "atravesso o deserto do Saara" é uma latinha de cerveja que me presenteiam


DUVIDO QUE ALGUÉM OUÇA mais palavras motivacionais durante o Carnaval do que eu. É gente de todos os lados do salão se esbarrando em mim e dizendo: "Mas que exemplo de superação! Nessa situação, e tão animado aqui no baile, né?! Olha como ele se diverte, parabéns!".
Nunca entendi por que tentar sacolejar com minhas quatro rodas na avenida ou nas quebradas seja demonstração de "tô podendo". Para mim, curtir a vida é quase obrigação de quem respira.
É claro que é mais comum as pessoas com deficiência serem retratadas em alas de hospitais de clínicas do que nas de baianas da Sapucaí. Mas daí a achar que o fato de soltar a franga ao som de sambas de enredos e marchinhas seja algo extraordinário, ainda leva um queijo e uma rapadura.
O problema de festejarem a "superação" do povo cego, surdo ou avariado geral do esqueleto durante o Carnaval é que a gente deixa de se divertir para contar a história de vida para aqueles mais sensibilizados.
"Sim, foi acidente. Caí do caminhão de mudança." "Não, o cão-guia não samba nem late, nem nada." "Não, não escuto mesmo. Danço de acordo com as vibrações da música."
Mas dá mesmo vontade de chorar pelado no asfalto quente é quando surgem os bêbados ou foliões mais animados -sem jamais a gente ter visto a cara deles- querendo levar mais alegria para o nosso "alalaô".
No meu caso, eles saem empurrando a cadeira de forma desembestada pelo salão atropelando todo mundo -pânico total de um pierrô cair no meu colo. Sem exceções, fazem "bibi" para abrir passagem e me deixar "triunfar" de alegria sendo conduzido por um pinguço.
Juro que não sou ranzinza. Acontece que nada deixa um cadeirante mais incomodado do que um estranho tomar as rédeas de seu veículo e ainda querer brincar de cavalinho de pau. Parafraseando o Chico, "deixe o menino sambar em paz".
Mas há um lado bom da admiração carnavalesca que alguns sentem pelo povo deficiente: é a pinga de graça. A cada vez que "atravesso o deserto do Saara" é uma latinha de cerveja que me presenteiam, afinal, "não é toda hora que se vê gente assim por aqui".
A dureza, porém, vem depois de ficar com todos os goles que talvez fossem para o santo. Onde descarregar a cervejada que entrou no bucho? Cadê o banheiro acessível dos clubes, dos camarotes, das barras ondinas, das ladeiras?
Sou totalmente favorável à campanha que o Rio está fazendo para que os foliões não façam "xixo" nas ruas durante os desfiles de blocos. Mas que não se esqueçam dos banheiros químicos acessíveis para que todo o mundo possa urinar feliz, sem disputar postes e esquininhas com os lulus e sujões.
E boa sorte para os meus coleguinhas mal-acabados que vão encarar a muvuca e as multidões para seguir os trios elétricos de Salvador e outras capitais festeiras. Imagine a dor no pescoço de tanto ficar olhando para cima para enxergar alguma coisa?
Quem já foi garante que os seguranças dos cordões de isolamento dão aquela "hand" e dá para aproveitar muito bem, como tem de ser para todos. Contudo, é preciso relaxar porque a chance de fazer amizade forçada é imensa. Sei não, que nossa senhora da vassourinha do frevo e dos abadás do axé os proteja.

jairo.marques@grupofolha.com.br

@assimcomovc

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