São Paulo, terça-feira, 01 de março de 2011

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Na tela com o poeta

Câmera livra estátua de Drummond dos vândalos e capta cenas que vão do grotesco ao tocante

ELIANE TRINDADE
ENVIADA ESPECIAL AO RIO

Foram 34 fotos, nove afagos, dois tapinhas na careca e três bate-papos em uma hora -das 14h às 15h da quarta-feira. Tudo captado por uma discreta câmera em um poste em frente à estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), no calçadão de Copacabana, no Rio.
Ligado 24 horas desde 28 de dezembro de 2009, o artefato trouxe alento aos olhos fatigados da escultura de bronze. Desde 2002, quando foi inaugurada, a estátua teve os óculos roubados ou danificados oito vezes. "A câmera acabou com o vandalismo", diz o prefeito Eduardo Paes.
Em 13 meses, não houve nenhum registro de dano.
Do gabinete, Paes tem acesso às imagens da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego). Acompanha o vaivém de cariocas e turistas pelo banco ocupado pela réplica em tamanho natural do poeta de Itabira (MG).
A Folha acompanhou o reality show de Drummond em diferentes horários, entre quarta e quinta-feira, por um dos 80 monitores do recém-inaugurado Centro de Operações da Prefeitura do Rio, onde são jogadas imagens de 200 câmeras que controlam as vias da cidade.
O cenário de cartão-postal é tomado por turistas que, entre um banho de mar e uma água de coco, interagem com o monumento.
Na tarde de quarta, o poeta testemunhou uma troca de fraldas e o show de duas popozudas que moldaram sua face com as nádegas na pose clássica das "cachorras".
Chama a atenção a falta de cerimônia. Há quem faça o poeta de cabide, pendurando a roupa enquanto sacode a areia ao sair do mar.
Bêbados, loucos ou solitários param para um dedo de prosa, indiferentes aos demais transeuntes e à câmera.
Moradores de Copa e banhistas não se intimidam em descansar ao lado da figura frágil do poeta com um livro no colo e a epígrafe "No mar estava escrito uma cidade".
A cena mais comum é a de curiosos se alternando em fila por um click com a estátua.
No final da tarde de quinta, um grupo ruidoso de adolescentes não tem muita noção de quem se trata.
"Acho que é o Dumont, aquele do avião", diz Bruna Nascimento, 15, de São Gonçalo. "Não, menina, é o Dumont da poesia", rebate Izabel Rhaizyasmin, 20, tentando esclarecer à prima de que não se trata do aviador Alberto Santos-Dumont.
A analista de sistema Débora Marques sabe bem quem é Drummond. A curitibana esticou a caminhada de Ipanema até Copa para tirar uma foto abraçada à estátua. "Bati um papo com ele", brinca. Estudante de letras, ela lembra do "Poema de Sete Faces", o seu preferido.

SOL E CHUVA
Os fãs de Drummond protagonizam cenas tocantes. "Numa noite chuvosa, uma pessoa se sentou ao lado da estátua, colocou uma capa sobre ele e ficou lá debaixo do guarda-chuva fazendo companhia ao poeta", relata Fábio Mendonça, subgerente de monitoramento da CET-Rio.
É famoso também o cidadão que, em plena luz do dia, dava pinta por lá para engraxar os sapatos da escultura. "Tem um maluco, que sempre por volta das 7h, fica lá batendo papo com a estátua", constata o prefeito.
O monumento escapou do vandalismo, mas é cenário de gestos grotescos, como o da meia-noite de quarta: um rapaz simplesmente montou nos ombros de Drummond. Não satisfeito, cavalgou o velho poeta como num rodeio.
Ao cair da noite, casais namoram sob as bênçãos do poeta. Em alguns momentos, os amassos são quentes.
Na madrugada de quinta, um casal idoso e dois jovens se sentam no banco. "Espremem" a estátua e se metem numa discussão que dura 16 minutos. O senhor grisalho se exalta, gesticula e grita com o jovem. As mulheres também participam do debate.
São 1h17 quando os ânimos se amainam. O idoso bate no ombro do poeta, como quem pede desculpa, e se vai.
O Drummond de bronze está sozinho. A imagem evoca seus versos de "Passagem do Ano": "Fica sempre uma franja de vida onde se sentam dois homens".


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