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RIO
Pesquisa revela que, no maior hospital psiquiátrico do país, quatro em cada dez pacientes não mantêm contato o mundo externo
Censo revela abandono em manicômio
Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
Pacientes do hospital psiquiátrico Dr. Eiras, em Paracambi (RJ), onde 94% dos internos nunca sequer receberam a visita de um amigo
MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A PARACAMBI
'Levanta, Dudu!'
Dudu levanta, sorridente.
'Senta, Dudu!'
Dudu senta, em silêncio.
'Muito bem, Dudu.'
Dudu já fugiu algumas vezes,
consta que não sabe quem é e não
pronuncia palavra alguma.
Dudu não é um cão amestrado,
mas sim um homem de idade ignorada, que já passou dos 20 anos
de idade e talvez não tenha chegado aos 30. Quem lhe ordena os
movimentos não é um adestrador, mas o psiquiatra Talma Dias
Maciel, co-diretor-médico do
maior hospital psiquiátrico do
Brasil, a Casa de Saúde Dr. Eiras,
em Paracambi (RJ), cidade a 75
km do Rio de Janeiro.
Com as ordens, o psiquiatra
tenta mostrar ao repórter da Folha que, a despeito do retardo
mental, Dudu, um dos 1.311 internos, responde a estímulos.
A poucos metros de Dudu, outro paciente, Chiquinho, encosta-se na parede. Às vezes, não agora,
bate nela com a cabeça.
Nesse pavilhão, o São Joaquim,
um dos oito em atividade, há 53
doentes crônicos, todos homens,
com as cabeças raspadas compulsoriamente, sob a alegação de
norma higiênica.
Maltrapilhos, dificilmente não
seriam considerados mendigos se
vistos nas ruas. Muitos exibem cicatrizes no couro cabeludo, consequência de quedas, de acordo
com os médicos.
Três se recusam a se vestir e andam nus. Cinco, considerados
agressivos demais, são proibidos
de sair para passear na propriedade de 500 mil metros quadrados
-46 campos do Maracanã-,
protegida por cerca de arame farpado e muro.
Os dormitórios parecem baias,
o espaço reservado para recolher
o gado num estábulo. Não há janela nem porta nos vãos livres
que dão para o pátio. O frio é intenso nas noites de inverno.
Sobre um bloco estreito de alvenaria em 'L' grudado na parede,
são colocados cinco colchonetes,
onde dormem os doentes, protegidos por cobertor.
Faz um ano que o cotidiano dos
pacientes da Dr. Eiras tornou-se o
motivo do principal embate em
curso no país entre modelos de
tratamento psiquiátrico, opondo
o hospital às autoridades públicas
responsáveis pela saúde mental.
Casa dos horrores
Em maio e agosto de 2000, o Ministério da Saúde produziu auditorias que descreveram um quadro de 'casa dos horrores', negado pela Dr. Eiras. Uma caravana
da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados
igualmente criticou o manicômio.
No dia 8 de novembro, a Secretaria de Estado de Saúde proibiu
novas internações -havia pouco
mais de 1.500 pacientes-, assumiu a gestão das verbas do SUS
(Sistema Único de Saúde) destinadas à Dr. Eiras (R$ 13 milhões
em 2000) e promoveu um censo
agora concluído e a cujas 93 páginas a Folha teve acesso.
As entrevistas foram feitas por
duplas (um psiquiatra e outro
profissional de saúde mental, como psicólogo).
Um a um, os pacientes falaram
sobre suas vidas -alguns não
conseguem falar-, tiveram os
prontuários investigados, sofreram observação sistemática e receberam diagnóstico.
Em fevereiro, foram divulgados
dados parciais, posteriormente
modificados.
Algumas conclusões expõem,
além das limitações psíquicas, a
origem pobre da esmagadora
maioria dos 1.494 pacientes avaliados: 49,6% dos homens e 47,1%
das mulheres são analfabetos;
51,2% dos homens e 61,3% das
mulheres não têm renda de nenhuma origem; é péssimo o estado da arcada dentária de 68%.
Graças ao formato de asilo psiquiátrico que se expandiu na década de 60, levando doentes mentais a se isolarem em regiões rurais, 84% deles estão internados
há pelo menos um ano e 36,6%,
há mais de dez anos.
Apesar de a Dr. Eiras contar
com ações terapêuticas como
uma horta, um ateliê e uma rádio
comunitária, por exemplo, somente 12% dos homens e 14,8%
das mulheres participam de atividades sistemáticas. No total, passam o dia na cama 15,1% dos homens e 16,1% das mulheres.
Andam de um lado para o outro
(""perambulam a esmo pela casa
de saúde", de acordo com a definição do censo) 64,0% dos homens e 58,6% das mulheres. Dos
homens, 2,8% não conseguem
andar. Das mulheres, 4,4%.
A equipe do censo recomendou
a manutenção da internação de
apenas 6,2%. Não propõe a alta
imediata para o restante, mas a
perspectiva de tratamentos alternativos fora do manicômio.
Solidão
A solidão e o abandono são dramas dos doentes da Dr. Eiras. De
cada dez, quatro não mantêm nenhuma espécie de contato com
pessoas de fora do hospital
-39,6% deles não recebem ninguém da família e 94% dos internos, nenhum amigo.
Um órfão portador de síndrome de Down, de 42 anos, sem parentes conhecidos, é mantido no
hospital psiquiátrico, não-indicado para ele.
""Poderia ir embora, se uma família quisesse adotá-lo, alimentá-lo", afirma o psiquiatra Paulo Silva de Oliveira, da Dr. Eiras. ""Ele
come bem. Talvez por isso ninguém queira ficar com ele", completa, com ironia.
Na quinta-feira, a Folha esteve
durante 4 horas e 57 minutos na
Dr. Eiras de Paracambi, numa visita monitorada pelos diretores
do hospital, que permitiram acesso a todas as dependências. Funcionários haviam sido avisados da
presença dos jornalistas.
Quando viu passar o psiquiatra
Paulo Gedeon, um dos dois diretores-médicos, a paciente Viviane
abraçou-o, presenteou-o com um
desenho e pediu seus sapatos
-quase todos os internos caminham descalços.
Viviane foi para a Dr. Eiras no
fim da adolescência, há no mínimo cinco anos. Não há informações sobre sua família.
Mesmo a parentes dispostos a
cuidar dos seus doentes, faltam
condições. Dia sim, dia não, o
aposentado Sidnei Pereira, 70, vai
de bicicleta à casa de saúde visitar
o filho Luís Fernando.
""Ele tem 40 anos, mas é como
um bebê de 6 meses. Está aqui há
mais de 20 anos. Não pode ficar lá
em casa porque não tem quem
cuide. Se tivesse, eu o levaria",
afirmou Pereira.
Talvez não fosse para o hospital
ser assim: em 1963, a Dr. Eiras de
Botafogo (zona sul do Rio), criada
ainda no Império, ergueu a filial
de Paracambi, cidade hoje com 42
mil habitantes.
O cenário exuberante e bucólico, num vale, prometia outro
mundo -""um local em que o
contato direto com a natureza
funcionasse como agente catalisador das tensões emocionais do
homem urbano", de acordo com
um vídeo institucional do hospital feito há um ano.
Mudança
Com a publicação da nova lei federal sobre política psiquiátrica,
em abril, e a orientação do Ministério da Saúde contrária às internações como tratamento prioritário, a Dr. Eiras deve desinchar.
Desde novembro do ano passado,
com a intervenção branca da Secretaria de Estado de Saúde, aproximadamente 200 pacientes receberam alta e passaram a ser acompanhados regularmente. Eles vivem com as famílias ou em residências terapêuticas.
A queda de internos foi de cerca
de 15% em oito meses. Os óbitos
caíram mais (26%), na comparação de dois períodos semelhantes,
(novembro de 1999 a junho de
2000, quando a Dr. Eiras não era
monitorada, e novembro de 2000
a junho de 2001): de 27 mortes para 20. No começo da semana, uma
mulher de 36 anos morreu na fila
do lanche. O hospital ignora a
causa da morte.
A Folha não viu os ratos, maus-tratos físicos e esgoto a céu aberto
apontados por auditoria do Ministério da Saúde. Viu no chão fezes de uma interna que não recebe
fraldas geriátricas, pacientes prostrados vendo TV e um ambiente
que pouco lembra ""a humanização do atendimento e a ressocialização do paciente" pregadas no
modelo terapêutico divulgado pela Dr. Eiras.
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