São Paulo, domingo, 01 de julho de 2001

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RIO
Pesquisa revela que, no maior hospital psiquiátrico do país, quatro em cada dez pacientes não mantêm contato o mundo externo
Censo revela abandono em manicômio

Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem Pacientes do hospital psiquiátrico Dr. Eiras, em Paracambi (RJ), onde 94% dos internos nunca sequer receberam a visita de um amigo MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A PARACAMBI

'Levanta, Dudu!'
Dudu levanta, sorridente.
'Senta, Dudu!'
Dudu senta, em silêncio.
'Muito bem, Dudu.'
Dudu já fugiu algumas vezes, consta que não sabe quem é e não pronuncia palavra alguma.
Dudu não é um cão amestrado, mas sim um homem de idade ignorada, que já passou dos 20 anos de idade e talvez não tenha chegado aos 30. Quem lhe ordena os movimentos não é um adestrador, mas o psiquiatra Talma Dias Maciel, co-diretor-médico do maior hospital psiquiátrico do Brasil, a Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi (RJ), cidade a 75 km do Rio de Janeiro.
Com as ordens, o psiquiatra tenta mostrar ao repórter da Folha que, a despeito do retardo mental, Dudu, um dos 1.311 internos, responde a estímulos.
A poucos metros de Dudu, outro paciente, Chiquinho, encosta-se na parede. Às vezes, não agora, bate nela com a cabeça.
Nesse pavilhão, o São Joaquim, um dos oito em atividade, há 53 doentes crônicos, todos homens, com as cabeças raspadas compulsoriamente, sob a alegação de norma higiênica.
Maltrapilhos, dificilmente não seriam considerados mendigos se vistos nas ruas. Muitos exibem cicatrizes no couro cabeludo, consequência de quedas, de acordo com os médicos.
Três se recusam a se vestir e andam nus. Cinco, considerados agressivos demais, são proibidos de sair para passear na propriedade de 500 mil metros quadrados -46 campos do Maracanã-, protegida por cerca de arame farpado e muro.
Os dormitórios parecem baias, o espaço reservado para recolher o gado num estábulo. Não há janela nem porta nos vãos livres que dão para o pátio. O frio é intenso nas noites de inverno.
Sobre um bloco estreito de alvenaria em 'L' grudado na parede, são colocados cinco colchonetes, onde dormem os doentes, protegidos por cobertor.
Faz um ano que o cotidiano dos pacientes da Dr. Eiras tornou-se o motivo do principal embate em curso no país entre modelos de tratamento psiquiátrico, opondo o hospital às autoridades públicas responsáveis pela saúde mental.

Casa dos horrores
Em maio e agosto de 2000, o Ministério da Saúde produziu auditorias que descreveram um quadro de 'casa dos horrores', negado pela Dr. Eiras. Uma caravana da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados igualmente criticou o manicômio.
No dia 8 de novembro, a Secretaria de Estado de Saúde proibiu novas internações -havia pouco mais de 1.500 pacientes-, assumiu a gestão das verbas do SUS (Sistema Único de Saúde) destinadas à Dr. Eiras (R$ 13 milhões em 2000) e promoveu um censo agora concluído e a cujas 93 páginas a Folha teve acesso.
As entrevistas foram feitas por duplas (um psiquiatra e outro profissional de saúde mental, como psicólogo).
Um a um, os pacientes falaram sobre suas vidas -alguns não conseguem falar-, tiveram os prontuários investigados, sofreram observação sistemática e receberam diagnóstico.
Em fevereiro, foram divulgados dados parciais, posteriormente modificados.
Algumas conclusões expõem, além das limitações psíquicas, a origem pobre da esmagadora maioria dos 1.494 pacientes avaliados: 49,6% dos homens e 47,1% das mulheres são analfabetos; 51,2% dos homens e 61,3% das mulheres não têm renda de nenhuma origem; é péssimo o estado da arcada dentária de 68%.
Graças ao formato de asilo psiquiátrico que se expandiu na década de 60, levando doentes mentais a se isolarem em regiões rurais, 84% deles estão internados há pelo menos um ano e 36,6%, há mais de dez anos.
Apesar de a Dr. Eiras contar com ações terapêuticas como uma horta, um ateliê e uma rádio comunitária, por exemplo, somente 12% dos homens e 14,8% das mulheres participam de atividades sistemáticas. No total, passam o dia na cama 15,1% dos homens e 16,1% das mulheres.
Andam de um lado para o outro (""perambulam a esmo pela casa de saúde", de acordo com a definição do censo) 64,0% dos homens e 58,6% das mulheres. Dos homens, 2,8% não conseguem andar. Das mulheres, 4,4%.
A equipe do censo recomendou a manutenção da internação de apenas 6,2%. Não propõe a alta imediata para o restante, mas a perspectiva de tratamentos alternativos fora do manicômio.

Solidão
A solidão e o abandono são dramas dos doentes da Dr. Eiras. De cada dez, quatro não mantêm nenhuma espécie de contato com pessoas de fora do hospital -39,6% deles não recebem ninguém da família e 94% dos internos, nenhum amigo.
Um órfão portador de síndrome de Down, de 42 anos, sem parentes conhecidos, é mantido no hospital psiquiátrico, não-indicado para ele.
""Poderia ir embora, se uma família quisesse adotá-lo, alimentá-lo", afirma o psiquiatra Paulo Silva de Oliveira, da Dr. Eiras. ""Ele come bem. Talvez por isso ninguém queira ficar com ele", completa, com ironia.
Na quinta-feira, a Folha esteve durante 4 horas e 57 minutos na Dr. Eiras de Paracambi, numa visita monitorada pelos diretores do hospital, que permitiram acesso a todas as dependências. Funcionários haviam sido avisados da presença dos jornalistas.
Quando viu passar o psiquiatra Paulo Gedeon, um dos dois diretores-médicos, a paciente Viviane abraçou-o, presenteou-o com um desenho e pediu seus sapatos -quase todos os internos caminham descalços.
Viviane foi para a Dr. Eiras no fim da adolescência, há no mínimo cinco anos. Não há informações sobre sua família.
Mesmo a parentes dispostos a cuidar dos seus doentes, faltam condições. Dia sim, dia não, o aposentado Sidnei Pereira, 70, vai de bicicleta à casa de saúde visitar o filho Luís Fernando.
""Ele tem 40 anos, mas é como um bebê de 6 meses. Está aqui há mais de 20 anos. Não pode ficar lá em casa porque não tem quem cuide. Se tivesse, eu o levaria", afirmou Pereira.
Talvez não fosse para o hospital ser assim: em 1963, a Dr. Eiras de Botafogo (zona sul do Rio), criada ainda no Império, ergueu a filial de Paracambi, cidade hoje com 42 mil habitantes.
O cenário exuberante e bucólico, num vale, prometia outro mundo -""um local em que o contato direto com a natureza funcionasse como agente catalisador das tensões emocionais do homem urbano", de acordo com um vídeo institucional do hospital feito há um ano.

Mudança
Com a publicação da nova lei federal sobre política psiquiátrica, em abril, e a orientação do Ministério da Saúde contrária às internações como tratamento prioritário, a Dr. Eiras deve desinchar. Desde novembro do ano passado, com a intervenção branca da Secretaria de Estado de Saúde, aproximadamente 200 pacientes receberam alta e passaram a ser acompanhados regularmente. Eles vivem com as famílias ou em residências terapêuticas.
A queda de internos foi de cerca de 15% em oito meses. Os óbitos caíram mais (26%), na comparação de dois períodos semelhantes, (novembro de 1999 a junho de 2000, quando a Dr. Eiras não era monitorada, e novembro de 2000 a junho de 2001): de 27 mortes para 20. No começo da semana, uma mulher de 36 anos morreu na fila do lanche. O hospital ignora a causa da morte.
A Folha não viu os ratos, maus-tratos físicos e esgoto a céu aberto apontados por auditoria do Ministério da Saúde. Viu no chão fezes de uma interna que não recebe fraldas geriátricas, pacientes prostrados vendo TV e um ambiente que pouco lembra ""a humanização do atendimento e a ressocialização do paciente" pregadas no modelo terapêutico divulgado pela Dr. Eiras.



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