São Paulo, sábado, 01 de julho de 2006

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WALTER CENEVIVA

Entre inocentes e criminosos

Hoje, o povo tem clara consciência da aplicação discriminatória da lei, até pelas tradições do direito

PROPONHO À leitora-cidadã e ao leitor-cidadão a seguinte pergunta, relacionada diretamente com o direito: qual a situação que você considera mais grave, a de manter preso um inocente ou a de soltar o acusado de um crime? Antecipo que, se sua escolha foi precedida por um hesitante "depende do caso", saiba que sua resposta vem com uma violação constitucional, a ser esclarecida ao fim.
Na comunicação de massa, sobretudo a eletrônica do rádio e da televisão (já não falo dos blogs da internet), as referências pessoais, divulgadas instantaneamente a milhões de pessoas (interessadas e não interessadas no assunto), fazem heróis e delinqüentes em frações mínimas de tempo. Mais do que no passado, quando a comunicação era quase exclusivamente de pessoa a pessoa. Agora a notícia e os comentários dos meios de comunicação social são capazes de gerar heróis e criminosos. Podem até transferir os primeiros para a categoria dos segundos, mas o processo inverso não será possível.
Quando as denúncias, ainda que falsas, se tornarem públicas, a reversão integral será inviável. Repete-se a velha história daquele pai que, querendo dar uma lição ao filho, mandou que espalhasse ao vento as plumas leves de um travesseiro. Depois lhe determinou que as recolhesse, uma por uma. Quando o filho afirmou a impossibilidade dessa missão, seu pai lhe explicou: "Pois saiba que a maledicência e a informação ruim transmitida a respeito de uma pessoa têm natureza igual à pluma. Uma vez lançada, não há modo de recompor integralmente a situação anterior".
Volto à Constituição, na qual há um dispositivo dificilmente compreendido e pouco aceito pela comunidade. Está no inciso 57 do artigo 5º. Nele se lê que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória". Assim é porque a Carta Magna presume a inocência de todas as pessoas, até prova em contrário. No conturbado universo em que vivemos, acredita-se muito nos meios à disposição dos poderosos para ocultar ou distorcer a verdade. Seu sub-produto é a crença firme em tudo o que se diz de mal a respeito dos outros.
Além desse lado, há, com ofensa ao direito à vida e à honra das pessoas, a questão dos graus de culpa ou dolo nas condutas ilícitas. Na avaliação desses graus entram os advogados. Quem tenha um bom advogado, tende a receber punição mais branda em relação a quem não disponha de meios econômicos para sua defesa. O processo criminal do réu pobre corre mais rápido que o do delinqüente (ou inocente) abonado. Hoje, o povo tem clara consciência da aplicação discriminatória da lei, até pelas tradições do direito. No passado, as próprias leis penais distinguiam certas penas aplicáveis aos desprovidos de meios pouco parecidas com as penas dos providos, de dignidades pessoais, dos nobres, dos militares e dos religiosos. Até a gradação da pena (da prisão à morte) tinha variáveis conforme o "status", a condição social dos envolvidos.
Em tudo uma conclusão triste: sempre foi assim. A certeza dessa circunstância não nos exime, não nos dispensa de lutar para corrigi-la, ou, ao menos, para melhorar a aplicação da justiça oficial, por mais deficiente, omissa e lenta que esta seja e continue a ser.


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