São Paulo, domingo, 01 de julho de 2007

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Nas redações, estudantes narram dias de Iraque no Rio

Alunos das imediações do complexo do Alemão relatam, no papel, a rotina dos confrontos

"Fiquei com medo de a bala perdida me achar", escreve com bom humor um dos jovens de 14 a 17 anos da rede pública da região

MÁRCIA BRASIL
DA SUCURSAL DO RIO

Dois meses de rajadas de metralhadoras, tiros de fuzis, explosões, gritos de dor, desespero, o medo em cada esquina.
Com papel e caneta, alunos das escolas públicas nas imediações do complexo do Alemão (zona norte do Rio) relataram suas notícias do "front" do combate da polícia a traficantes, que já provocou 44 mortes (19 só na quarta-feira) e deixou ao menos 71 feridos.
São jovens entre 14 e 17 anos que descrevem -nas redações que produziram para as escolas onde estudam- sua visão particular da guerra travada na sua vizinhança: "A Penha [um dos cinco bairros do complexo] parecia o Iraque", "Thursday bloody thursday"(quinta sangrenta, numa referência à música "Sunday Bloody Sunday" do grupo irlandês U2, que narra um domingo idem); "melhor ter fé do que ver o "caveirão'".
Os relatos transbordam inconformidade, mas alguns arriscam até tiradas bem-humoradas: "Fiquei com medo de a bala perdida me achar", escreve um deles em uma das 50 redações às quais a Folha teve acesso sob compromisso de não revelar os autores.
"Não podia me dedicar totalmente à prova por causa do barulho dos tiros", testemunha um dos jovens. "As comunidades sofrem com a violência, milhões foram gastos com o Pan, em vez de gastar com a segurança do Estado", critica outro. A proximidade com a criminalidade e a desconfiança em relação às forças de segurança do Estado também é relatada. "Eu tenho mais medo de polícia do que do bandido. Bandido eu vejo todos os dias."
Há acusações de violência policial. "Soube que colocaram um menino dentro do tal "caveirão", onde foi espancado e depois solto", testemunha um adolescente. "Eu soube de um garoto morto na laje ao subir para ver a caixa-d'água metralhada; acharam que ele era traficante", declara outro.
Os alunos também revelam a preocupação com o prolongamento do conflito.
"O que mais choca é que quem sofre mais somos nós, os inocentes." Ou: "Estou cada vez mais traumatizado... e isso está acontecendo freqüentemente; estou com medo até de vir estudar".
Os detalhes remetem a um diário de guerra: "Quinta-feira, dia 3/5/07, acordei às 6h como sempre. Mas agora, em vez do barulho do despertador, ouvi helicópteros sobrevoando o morro. Passei o dia todo em casa escutando tudo o que acontecia e me sentindo na Segunda Guerra Mundial."
A religiosidade é uma das saídas para parte dos alunos para suportar os efeitos do conflito. "Necessito mais de fé e de coragem para viver e ouvir todo esse confronto." Mas há quem defenda soluções mais terrenas: "A gente não pode ficar esperando a ajuda dos céus. A mudança tem que começar por nós mesmos".


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