São Paulo, domingo, 01 de julho de 2007

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GILBERTO DIMENSTEIN

Lição de um triângulo amoroso


O aluno é o responsável pelo baixo aprendizado. A culpa, portanto, seria da vítima -e, pior, ela concorda com isso

ANA LÚCIA TEIXEIRA TINHA sete anos, e Marcos Costa, 11, quando se conheceram na Escola Municipal Maria Antonieta D'Alkimin, nos tempos em que a classe média ainda reverenciava o ensino público. Nunca mais se separaram. Casaram-se. Quando tiveram filhos, a educação pública não tinha nem remotamente o prestígio do passado. Resolveram, porém, matriculá-los naquele mesmo colégio em que se apaixonaram. Esse triângulo amoroso, formado por um casal e uma escola, revelou, neste mês, um inesperado resultado, desses que servem de lição para o país.
Apesar de atender alunos de várias favelas, a Maria Antonieta D'Alkimin obteve, em São Paulo, o primeiro lugar na lista elaborada pelo Ministério da Educação. "É mesmo um caso de amor", resume Ana Lúcia. Um dos filhos do casal, Daniel, comandou o grêmio da escola. Esse triângulo tem especial significado diante da pesquisa da Unesco divulgada na semana passada: professores, pais, diretores, coordenadores e os próprios estudantes apontam o aluno como principal responsável pelo baixo aprendizado.
A culpa, portanto, seria da vítima -e, pior, a própria vítima concorda com isso.

 

Ana Lúcia e Marcos fazem parte de uma mobilização para melhorar o ensino público. Mesmo sem estudarem pedagogia, participam no desenho de um molde, ignorado até por especialistas, da escola pública ideal.
A mobilização dos pais, cobrando dos professores e do diretor mais empenho, por si só, já exerceria efeito, como demonstram estudos em todo o mundo. Ana Lúcia, entretanto, mesmo ficando com o primeiro lugar, não está satisfeita: "Podemos ir muito mais longe, mesmo sem ter mais dinheiro, desde que aumente, cada vez mais, o empenho da direção". Ela pede, por exemplo, que a escola fique aberta nos fins de semana e menos faltas de professores.
Olhando o que acontece ali, vemos um arranjo educativo local -e aí se comprova, pela enésima vez, o valor do entrosamento comunitário.
 

Uma boa parte dos alunos da Maria Antonieta D'Alkimin, localizada na Vila Olímpia, mora numa favela, de nome Coliseu. É lá que, depois das aulas, eles tiram suas dúvidas, além de praticarem atividades esportivas e culturais. Estudantes que moram num abrigo público (Santa Tereza) também são auxiliados para fazer a lição de casa e desenvolver habilidades de leitura e de escrita.
Um grupo de 40 alunos da escola compõe-se de filhos dos empregados mais pobres de um shopping de luxo (a loja Daslu), localizado, aliás, exatamente ao lado da favela Coliseu. Como os meninos e as meninas da favela, os estudantes recebem reforço durante todo o contraturno.
Em suma, para uma parte expressiva dos estudantes daquela escola, justamente a mais vulnerável, existe uma jornada ampliada -mais um ingrediente apontado nas pesquisas como decisivo no aprendizado.
 

Uma universidade situada nas proximidades (a Anhembi) oferece cursos de computação e inglês; voluntários de um banco (o Real) patrocinam atividades de dança contemporânea e esportes. Articularam-se os equipamentos públicos de educação, saúde, assistência social e cultural. O Conselho Tutelar, por exemplo, manifesta-se quando recebe denúncias de falta de atenção aos alunos mais vulneráveis.
Há uma ligação especial entre a escola e o posto de saúde. É inevitável fazer uma associação vital: quanto pior a saúde dos estudantes (o que é mais do que comum), pior o aprendizado. É preciso ser um ignorante total e absoluto para não perceber essa ligação -essa ignorância é justamente o que aponta aquele estudo da Unesco, segundo o qual a culpa é da vítima.
 

Esse arranjo local é complexo porque exige mobilização permanente e articulação entre a comunidade e diversas áreas do poder público, mas funciona. Basta ver a nota da escola, cujas deficiências, porém, persistem e são apontadas pelos pais.
Tanto funciona que, na quinta-feira passada, se reuniram reservadamente, em Brasília, representantes dos ministérios da Ciência e Tecnologia, da Educação, da Cultura, dos Esportes e do Desenvolvimento Social para descobrir como unir seus programas em torno da educação pública, estendendo-se numa rede pelos Estados e municípios.
Por depender da engenhosidade local, possivelmente, a chave para montar esse arranjo esteja mais na paixão de Ana Lúcia e Marcos por uma escola, sentimento transmitido aos filhos, do que nos técnicos. O casal participou do quase-milagre de manter a qualidade do ensino público dos tempos em que, crianças, se apaixonaram.
 

PS - Na lógica do arranjo local, o Ministério da Educação decidiu, na semana passada, conceder uma bolsa aos estudantes universitários que se disponham a auxiliar as escolas públicas -a bolsa seria, inicialmente, destinada aos alunos dos cursos de licenciatura e pedagogia. Há experiências desse tipo em andamento, tocadas por universidades mineiras, que mostram que, se o projeto for bem conduzido, todos sairão ganhando, a começar dos universitários, que adquirem habilidades profissionais. Coloquei em meu site (www.dimenstein.com.br) exemplos de arranjos educativos locais.

gdimen@uol.com.br


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