São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

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GILBERTO DIMENSTEIN

Diplomas de aluguel

Faculdades de direito alugam bibliotecas apenas para enganar os fiscais do Ministério da Educação -terminada a vistoria, os livros são devolvidos. A informação sobre esse inusitado aluguel é do presidente seccional paulista da OAB (Ordem do Advogados Brasil), Luiz Flávio D'Urso, que está alarmado com a qualidade dos alunos formados em cursos de direito. "Sabemos de faculdades que usam cinemas velhos e até plenários de Câmaras municipais", diz.
Detalhes desse tipo ajudam a explicar por que o exame exigido pela OAB para a prática profissional revela um escândalo. Neste ano, em São Paulo, o índice chegou aos 87% de reprovação. Na prática, os reprovados alugaram diplomas.
Na segunda-feira passada, em entrevista à Folha, o cardiologista José Antônio Ramires, diretor do Instituto do Coração, em São Paulo, defendeu a aplicação de exame semelhante aos formados nos cursos de medicina. Apenas expressou uma inquietação de sua categoria, que anda temerosa de que a propagação sem critérios das faculdades esteja produzindo profissionais desqualificados. "Apanham-se médicos, muitas vezes sem formação educacional adequada, e eles passam a dar aulas", ataca Ramires.
Certamente, se os critérios impostos pela OAB se disseminarem pelas demais categorias, o escândalo não ficará restrito aos advogados. Seria um ótimo e pedagógico choque para o país; muito mais dolorido e profundo do que aquele já visto com as atuais avaliações do ensino fundamental, médio e superior.

 

O que se vê no exame da OAB é absolutamente previsível; a rigor, nem deveria provocar escândalo. Existe uma cadeia de irresponsabilidades, omissões e fragilidades que explicam essas deficiências.
Na semana passada, uma pesquisa realizada com base no Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica) mostrou que o envolvimento da família é extremamente relevante no desempenho escolar dos filhos. Em geral, as famílias de maior poder aquisitivo têm disposição para esse tipo de envolvimento. Traduzindo: a batalha já começa a ser perdida em casa.
 

A derrota prossegue na escola. Um levantamento feito pela Unesco mostrou o seguinte: 45% dos professores nunca foram ou foram só uma vez a um museu; 40% nunca foram ou foram só uma vez ao teatro; 3) 25% nunca foram ou foram só uma vez ao cinema. Cerca de 60% deles não têm e-mail nem usam a internet.
Deixemos de lado o professor e vejamos os jovens entre 15 e 24 anos, segundo pesquisa nacional realizada pelo Instituto de Cidadania: 62% nunca foram ao teatro; 39% nunca foram ao cinema; 69% nunca foram a um museu; 52% nunca foram a uma biblioteca fora da escola.
 

Se os alunos, além de não contarem com estímulo cultural e educacional da família e dos professores, não lêem livros, não vão ao teatro, não freqüentam museus, por que, afinal, conseguiriam ter um bom desempenho escolar? Até porque os próprios professores, como mostra a pesquisa da Unesco, não são tão diferentes assim de seus alunos.
É óbvio que o desempenho do aluno depende não só do que aprende em sala de aula, mas, sobretudo, da bagagem cultural que o habilita a lidar pelo resto da vida com o conhecimento.
Não se vai sair do lugar se os governantes imaginarem que a melhoria da educação depende só de investimentos em sala de aula.
 

É escancaradamente óbvio que se devem tirar os estudantes da sala e incorporar ao currículo escolar o acesso permanente à vida cultural. Isso significa que, desde bem pequenos, os alunos têm de estar, acompanhados de seus professores, nos cinemas, nos teatros, nos museus, nas bibliotecas, nos parques. Devem ser utilizados em sala de aula programas de televisão de qualidade, assim como jornais e revistas aliados ao currículo tradicional.
A rigor, as secretarias da Educação e da Cultura deveriam constituir um só departamento, ao qual coubesse a tarefa de transformar a cidade em espaços cotidianos de aprendizado. E mais: sempre envolvendo a família. Sempre.
 

Nada disso implica mais dinheiro. Não se está pedindo que se construam prédios. Apenas que se use melhor o que já está disponível e que se treinem melhor professores e diretores para ampliar os horizontes do conhecimento.
Por que, afinal, não se condiciona a aprovação de benefícios fiscais a produções culturais à oferta de ingressos a alunos de escolas públicas? No dia em que acharmos que a educação é a prioridade das prioridades, perguntas óbvias desse tipo serão somente ridículas -assim como bibliotecas de aluguel.
 

PS - Daí que se pode medir a qualidade de um candidato a prefeito pelo que ele propõe para a melhoria de creches e pré-escolas. Todos os estudiosos sabem que a infância é a fase vital que vai determinar, pelo menos em parte, o desempenho educacional de um indivíduo. Se quiser medir o grau de civilidade de uma comunidade, basta verificar quantas crianças de zero a seis anos recebem atendimento digno.

E-mail - gdimen@uol.com.br

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