São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

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SOBREVIVENTES

Imigrantes japoneses relembram a guerra 59 anos depois e relatam as dificuldades no tratamento médico

Brasil abriga vítimas da bomba atômica

DÉBORA YURI
DA REVISTA

"Sabe o que me salvou? Um furúnculo. Estou viva até hoje graças a ele", conta Ayako Morita, 79. Ela fala baixo, em japonês. E explica: tinha 20 anos, morava em Hiroshima, seu trabalho era verificar a qualidade dos alimentos que os aviões norte-americanos lançavam sobre o território na Segunda Guerra. Boa parte das provisões, dizem, vinha envenenada.
Há 59 anos, em 6 de agosto de 1945, Ayako deveria ir para a sede da empresa, mas o furúnculo fez com que o supervisor lhe recomendasse ficar na filial. Às 8h15 daquele dia, um B-29 lançou a primeira bomba atômica da história sobre a cidade -a 500 m da sede. Ayako estava a 1.200 m.
Os 700 m de distância fizeram dela uma das sobreviventes da bomba, um contingente de pessoas que passou a vida inteira pagando as conseqüências da exposição à radiação atômica. Imigrante japonesa para o Brasil na década de 50, Ayako integra um subgrupo ainda mais prejudicado: o das vítimas que, por viverem fora do Japão, precisam voltar constantemente para fazer check-ups e tratamentos adequados.
Na mesma Hiroshima, "do outro lado da cidade", o policial militar Takashi Morita, 80, levava 13 colegas a um local para construir um abrigo para armamentos. Tinha 21 anos e caminhava a 1.300 m do hipocentro, o local onde a bomba caiu, quando escureceu.
"A seguir, vi diversas cores na minha frente, como um arco-íris. Uma escola de dois andares desabou como caixa de fósforo sendo amassada. Fui atirado a 10 m, senti um calor muito forte, percebi que minhas costas queimavam."
Então começou a chuva negra, ele relata. "Ouvi o ronco de um avião B-12 e pensei que estavam atirando óleo para botar fogo na população. Ninguém sabia o que era aquilo. Pensei: "Como o homem pode ter tanta maldade?". Vi uma multidão andando com queimaduras, o couro cabeludo derretido, a pele do braço pendurada, os músculos da perna estourados. A cidade estava vermelha, todos pediam água."
Ayako e Takashi se conheceram alguns anos depois, na Hiroshima pós-bomba atômica. Ele tinha aberto uma loja de relógios, perto da farmácia da família dela. O Japão era outro: um país pobre e destruído pela guerra. Então os dois, recém-casados, com dois filhos, decidiram embarcar numa viagem de 42 dias num navio.
"Alguns conhecidos diziam: "O Brasil é bom, vocês vão enriquecer lá". Muitos japoneses acreditaram, basta ver o tamanho da colônia japonesa", brinca Takashi, dono de uma loja de alimentos japoneses em São Paulo. Em 1984, ele fundou a Associação das Vítimas de Bomba Atômica no Brasil, com 17 associados. Hoje, são 135.
A bomba matou cerca de 140 mil pessoas em Hiroshima, e calcula-se que mais de 340 mil tenham sido expostas diretamente à radiação. Até hoje, quase seis décadas depois, essa exposição ameaça a saúde e o bem-estar de sobreviventes e descendentes. Entre os efeitos estão quelóides (tecidos inchados, semelhantes a cicatrizes e tumores), leucemia, câncer e microcefalia dos fetos.
Os riscos tornam a vida dos sobreviventes que deixaram o Japão mais difícil. O governo japonês oferece tratamento gratuito para as vítimas da bomba, além de dois check-ups anuais. Japoneses que vivem no Brasil podem requerer esse direito. Takashi calcula que mais de 30 já tenham recebido ajuda de custo para fazer exames ou tratamento com especialistas de Hiroshima. Isso inclui passagens aéreas e despesas médicas.
Mas Takashi luta para que o tratamento seja feito no Brasil e pago pelo governo japonês. "Uma viagem de 24 horas é muito cansativa para gente de nossa idade, e é difícil um idoso se dispor a ir sem acompanhante. Só que o governo não paga essas despesas", diz.
Para ele, o tratamento poderia ser feito aqui, com médicos do hospital Nipo-Brasileiro, ou com o envio mais regular de especialistas em radiação do Japão. "Eles vêm ao Brasil a cada dois anos ver as vítimas, verificam se precisam de tratamento especializado."
Segundo o cônsul-geral adjunto do Japão no Brasil, Soichi Sato, o governo japonês está empenhado em ajudar todas as vítimas das bombas, onde quer que elas morem. "O governo tem ajudado os sobreviventes no exterior. Uma missão do Ministério da Saúde inclusive veio ao país neste ano, tentar um acordo com a Associação das Vítimas no Brasil", afirma.

"Naquela manhã"
Então sargento do exército japonês, Seitsu Imakawa, 86, tinha 27 anos em agosto de 1945. Acabara de retornar para Hiroshima depois de um tempo na Manchúria, onde o Japão lutava contra a China; era recém-casado, a mulher vivia em outra cidade. Estava a 5 km do hipocentro, quando ouviu sirenes avisando que aviões americanos se aproximavam.
"Corri ao quartel para me refugiar. Ouvi o ronco de um avião, e então houve um estrondo: me escondi de outras bombas, achando que seria um bombardeio "normal", mas elas não foram lançadas", ele conta, lendo uma folha de papel escrita em japonês. "Fiz umas anotações para relatar corretamente o que aconteceu."
Seitsu lembra que, devido ao calor, se atirou num tanque de água. "Quando pus a cabeça para fora, meu corpo estava molhado e, mesmo assim, o colarinho de minha farda pegou fogo. Meu rosto ardia muito. Quando olhei em volta, a cidade estava destruída."
Nas ruas, muita gente corria "com queimaduras indescritíveis". Seitsu passou a ajudar os feridos. "O estoque de medicamentos e gaze acabou, então tivemos de tirar as faixas dos mortos para colocar nos que sobreviviam. Depois de duas horas, homens de outras cidades chegaram para ajudar; foi quando ouvimos falar em radiação atômica."
Ele lembra que desmaiou e acordou num hospital, com moscas pelo corpo. "A essa altura, minha maior preocupação era sobreviver. Assim, suportei a dor", diz Seitsu, que veio para o Brasil com a mulher no início dos anos 60. Aqui, foi agricultor, teve dez netos, e hoje é aposentado. O ex-sargento conta que dois de seus quatro filhos têm problemas de malformação devido à radiação.
"Sinto que sou mais frágil que o normal, pego doença facilmente", diz o comerciante Teruo Hosokawa, 77, que vive em São Paulo e todo ano viaja a Hiroshima para fazer check-up. "Recebi reembolso do governo japonês duas vezes."
Aos 18 anos, era recruta no interior, abastecendo os soldados do Exército, e entrou em Hiroshima no dia 10 de agosto, com 17 colegas, para ajudar no socorro aos feridos. No ano passado, foi visitá-los no Japão; só quatro estão vivos. "Sofri muito com a radiação a vida inteira, mas mesmo assim sinto que ganhei uma nova vida. Por isso, vim para o Brasil."

Nagasaki
A segunda bomba atômica da história foi lançada pelos americanos em Nagasaki, três dias depois da de Hiroshima, às 11h02, matando cerca de 70 mil pessoas.
Kiyotaka Iwasaki, 71, sobrevivente da bomba de Nagasaki que vive em São Paulo, teve câncer. O tumor foi retirado no Japão. "No ano passado, fui fazer check-up. Descobriram 19 pedras no meu rim e as tiraram. Agora estou bem", afirma, bem-humorado.
"A radiação é uma coisa terrível. Com 27 anos, quando me casei, meus dentes sangravam e caíam de repente. Eu desmaiava, sentia fraqueza, via tudo em preto, branco, preto", conta ele, que tem uma filha e desembarcou no Paraná em 1953, sozinho.
No dia 9 de agosto de 1945, Kiyotaka tinha 11 anos -era um garoto em férias escolares de verão. Brincava no mar quando viu um avião- não sabia se era americano ou japonês. Estava a 12 km do hipocentro. Voltou para casa e não encontrou ninguém. Correu ao esconderijo antibombas, ficou tranqüilo: lá estavam a mãe e a irmã. O pai lutava na China. "Só à noite, vi a cidade queimando."
Quase seis décadas depois das duas únicas bombas atômicas lançadas, Kiyotaka considera ter vivido "mais do que uma vida". "Falavam que os sobreviventes teriam só dois anos, mas olhe para mim. A gente nunca sabe. Ter vindo para o Brasil foi muito bom. Agora, a guerra é cruel demais. Não deixe de escrever isso", ele pede, arriscando palavras num português "japonesado".


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