São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2010

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MINHA HISTÓRIA ZORA YONARA BLESA SILVA, 36

Meu pé direito

Cresci na Santa Casa Enfermeiras e médicos eram minha família Escapei da morte e me entreguei ao serviço social

RESUMO Após nascer em 21 de dezembro de 1973, Zora Yonara Blesa Silva, com menos de seis meses de idade, foi vítima de erro médico que mudou completamente sua vida.
Ela escapou da morte, viveu quase cinco anos na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, longe da família e sob os cuidados de médicos e enfermeiras.
Depois de receber tanto cuidado, ela decidiu retribuir e ser uma cuidadora: virou assistente social.

Alessandro Shinoda/ Folhapress
Zora, em visita recente à Santa Casa de Misericórdia, no centro de São Paulo

(...)Depoimento a...
CRISTIANO CIPRIANO POMBO
DE SÃO PAULO

Eu estava desenganada. A família toda foi avisada, e meu pai já providenciava o caixãozinho de madeira.
Eu, Zora Yonara Blesa Silva, a sétima filha de dez irmãos e batizada por meu pai com o nome da radialista e astróloga favorita dele, estava entre a vida e a morte.
Tinha quatro meses de idade quando fui levada ao hospital em Itapetinga (a 360 km de Salvador) com desidratação. Lá, ao não acharem veia nos braços, decidiram pegar uma do pé, o pé direito.
Só que erraram a veia, e o soro foi jogado no músculo.
Ao notar meu pé inchado, minha mãe chamou o médico. Teria de amputar. Dificilmente eu sairia viva dali.
Fui batizada às pressas. Acho que a bênção de Deus ajudou. Iniciei, então, uma vida com base no pé direito.

NOVA CASA
Com medo de amputarem minha perna, meus pais me tiraram do hospital e pegaram um ônibus. Após um dia de viagem, eu enrolada num cueiro, entrei na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
Minha mãe me deixou lá e voltou para a Bahia. Tinha que cuidar dos meus irmãos.
Fiquei sob os cuidados da Santa Casa, onde passei a infância e a juventude. Não tenho fotos da época, só as do extenso prontuário. Meu pai diz que não tive infância.
Tudo que sei me remete ao pavilhão Fernandinho, de ortopedia e traumatologia, no 3º andar da Santa Casa.
Brincava pelos corredores, ajudava as tias a dar as mamadeiras a outras crianças internadas e sempre tomava as que sobravam da entrega.
Virei xodó do hospital. Eu era bonitinha e não achava ruim estar lá. Era o meu mundo. Eu quase nunca tinha visita, e minha mãe, às vezes, ligava para saber de mim.
Lembro de flores do pátio, da capela, onde as enfermeiras me levavam para passear.
Não era conto de fadas, pois ficava muito de repouso. Foram muitas cirurgias para reconstruírem um novo pé.
Passei meses com a perna e o pé direitos colados no bumbum, pois tinha feito enxerto, e a pele tinha que ficar junta para evitar rejeição.
Salvaram minha perna, mas perdi o dedão do pé.
Os médicos, em especial o dr. Santin [o ortopedista Roberto A. L. Santin], até me levavam para passar alguns finais de semana com eles, para brincar com seus filhos.
As enfermeiras e médicos viraram a minha família.

ADEUS À INFÂNCIA
Sei até que tive pedido de adoção. Mas eu era de minha mãe. Só que, quando ela veio me buscar, eu já tinha cinco anos e não queria mais sair da Santa Casa. Chorei e pedi: "Por favor, não deixem essa mãe da Bahia me levar".
Minha mãe me levou, mas não para a Bahia, afinal ainda tinha muita coisa para fazer na perna e no pé. Ela me deixou no Internato Pequeno Cotolengo, na Raposo Tavares, e eles me levavam toda semana à Santa Casa. De 75 a 91, fiz oito grandes cirurgias.
No dia em que minha mãe me deixou no colégio, eu estava com vestido de bolinhas vermelhas. Na época, não tinha complexo de usar vestido. Mas, após a infância, nunca mais voltei a usar um.
Cresci no internato e na Santa Casa, onde na adolescência coloquei um expansor para esticar a pele. Até hoje tenho um buraco na coxa. São muitas cicatrizes, por isso não vou à praia, à piscina nem uso vestido e salto alto. Escondo meu corpo, pois não gosto de muitas perguntas.
Quando fiz 17 anos e decidi sair do internato, me dei conta de que, além dele, após quase 18 anos em São Paulo, eu só conhecia a Santa Casa.

AGORA, CUIDADORA
Voltei à minha cidade natal, Macarani, a 400 km de Salvador. Era 92, e fiquei lá uns sete anos, até estudei magistério. Fui a única entre os filhos com força para cuidar de minha mãe, que sofreu cinco anos com câncer.
Nunca culpei minha mãe. Mas a morte dela me abateu. Voltei para São Paulo. Era onde tinha uma referência.
Quase fiz pedagogia, porque minha mãe era professora, mas optei por serviço social, para retribuir a ajuda que tive na vida. Passei no vestibular da PUC e comecei a estudar, mas aí a minha perna travou, das caminhadas que fazia todo dia do metrô Barra Funda à faculdade.
Sentia dor terrível, quase não conseguia ficar em pé. E lá fui eu à Santa Casa de novo. Só tinha em mente achar o dr. Santin, mas ele estava no Hospital Oswaldo Cruz.
Não tinha dinheiro, mas fui ao consultório. Ao me ver, ele se emocionou. Me falou que eu teria que passar por nova cirurgia. Ele me ajudou.
Foram três meses de recuperação, com o desafio de trabalhar no banco e estudar com ataduras e até vazamentos da cirurgia. Mas superei.
Fiz um estágio e me entreguei ao serviço social. Hoje trabalho no Núcleo de Apoio à Saúde da Família.
Creio que fiz as escolhas certas nesses 36 anos de vida. Ainda sonho em curar de vez a perna, o que requer mais cirurgias. Enquanto isso, continuo caminhando. Sempre firme e com os dois pés.


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