São Paulo, sexta-feira, 01 de setembro de 2006

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Doca Street afirma que mereceu ser condenado

30 anos após matar a namorada Ângela Diniz, ele diz que o Brasil melhorou desde então por não dar espaço ao machismo

Doca Street está sem grana. Doca Street interrompeu a entrevista à Folha três vezes para falar ao celular. Tentava vender um carro -"no mínimo R$ 20 mil". Doca Street mora em um apê de dois quartos no térreo de um predinho de Pinheiros, em São Paulo. Doca Street está casado. A mulher dele, Marilena Street, é corretora de imóveis -"porque precisamos do dinheiro", diz. Doca Street lança, na próxima segunda, o livro "Mea Culpa", sobre como matou Ângela Diniz, a Pantera de Minas, há 30 anos, um curto-circuito no Brasil. (LAURA CAPRIGLIONE)

"Doca, Cabo Frio está com você", lê-se no papel fotográfico amarelado que registra a manifestação de 500 pessoas diante da delegacia. Feministas levaram às ruas cartazes e faixas com os dizeres "Quem Ama não Mata". Queriam desqualificar a alegação de que foi amor demais a causa do homicídio e "mostrar que a sociedade não mais aceitava que homens tivessem direito de vida e morte sobre as mulheres".
"Você compraria um carro de Doca Street?" E um livro? Como vendedor de veículos, atividade à qual se dedicou após o crime e que só interrompeu nos cinco anos de cadeia, Doca conta 5.000 negócios em 14 anos -um por dia. Doca Street espera o mesmo sucesso do livro.
Ele jura que, se der lucro, "Mea Culpa" financiará uma ONG para "presos velhinhos que saem da cadeia sem nenhum apoio". Cinco minutos depois, será para "ajudar as criancinhas, filhas dos presos". "Pra falar a verdade, não sei ainda, mas estou entrando em contato com gente que entende desse assunto. Quero fazer alguma coisa para que minha vida tenha valido a pena."
Doca Street diz que não planeja reeditar o estilo de quando aparecia em colunas sociais de jornalistas como Ibrahim Sued, sempre com "tuxedos" (ele rejeita o termo "smoking"), ar de Humphrey Bogart, cigarro e copo de uísque com gelo na mão.
Em 1976, estava acostumado a acordar com taças de champanhe Veuve Clicquot misturado a suco de laranja para rebater excessos de álcool e cocaína.
Trinta anos após matar a namorada Ângela Diniz em um Brasil sem internet nem democracia (mas com a ditadura de Ernesto Geisel), Raul Fernando do Amaral Street, 72, chama a atenção: 1,86 m, esguio, basta cabeleira branca, jaquetão azul de seis botões, calça cáqui, mocassins e reflexos rápidos para ser gentil -ele insiste em carregar a pasta da repórter. "Cavalheirismo não é machismo, não é?", pergunta. Não, não é.
Doca é um homem educado. Hoje, diz que só bebe cerveja e que cigarros não são mais um vício. Na entrevista, contudo, foi atrás de um Marlboro, que tragou gostosamente. Aproveitou para lembrar a mãe: "Cecilinha acabaria comigo se me visse acender o cigarro de uma mulher com o fogo do isqueiro abaixo da linha do nariz dela".
"Vi o corpo da moça estendido no mármore da delegacia de Cabo Frio. Parecia ao mesmo tempo uma criança e boneca enorme quebrada... Mas desde o momento em que vi o seu cadáver tive imensa pena, não dela, boneca quebrada, mas de seu assassino", disse Carlos Heitor Cony, hoje colunista da Folha, então trabalhando na revista "Fatos & Fotos". Muito mais gente teve pena de Doca.
Foram cinco tiros na cabeça, 30 de dezembro de 1976. "Me abrace, pelo amor de Deus. Amo você", implorou Doca. "Se quiser me dividir com homens e mulheres, pode ficar, corno", teria dito Ângela. Ela emendou com o arremesso de uma pasta e uma pistola contra o rosto do ofendido. A pasta abriu-se, a arma caiu, Doca pegou-a e, "quando me virei, xingando-a, já estava atirando".
"Legítima defesa da honra." A defesa de Doca -lista de notáveis da advocacia, com Evandro Lins e Silva, Artur Lavigne, Técio Lins e Silva e José Carlos Dias- foi tão eficiente em descrever Ângela como "Vênus lasciva" movida a oceanos de vodca e quilos de cocaína que ele, no primeiro julgamento, em 1979, foi condenado a dois anos, com direito a sursis. Saiu livre do tribunal e virou uma espécie de herói nacional.
Ele se lembra: "Fiquei com vergonha de ser absolvido. Não entendi. Também não entendi por que era aplaudido e por que chovia mulher. Eu saía com elas, não resistia -testosterona no máximo-, mas não entendia. Um dia, uma moça me perguntou: "Como eu faço para te seduzir?". Fomos para o motel, tudo e tal, ela me disse: "Você é o Doca ou não?". Confirmei, ela me olhou decepcionada: "Puxa, você nem me bateu?". Saiu insatisfeita. Outra vez, fui ao cinema, baita fila, o gerente me viu: "Você não precisa ficar na fila". Eu pensava: "Será que estou ficando louco? Vou dar mais tiro por aí". (Doca ri)
O segundo julgamento foi em 1981. "As feministas fizeram bom trabalho", avalia Doca. Pegou 15 anos, cumpriu três em regime fechado, dois no semi-aberto, o resto em condicional. "Fui condenado, muito bem. Ainda bem que fui", ele diz. Para Doca, o Brasil entrou no caso Doca Street de um jeito e saiu de outro. "Digamos que foi uma fronteira. Depois disso, o Brasil melhorou, sim. Que bom! Não se aceita mais que um homem maltrate uma mulher. Vamos supor que eu não esteja gostando dessa sua entrevista. Eu vou encher a sua cara de porrada? Está certo? Não está." Ainda bem.


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