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Doca Street afirma que mereceu ser condenado
30 anos após matar a namorada Ângela Diniz, ele diz que o Brasil melhorou desde então por não dar espaço ao machismo
Doca Street está sem grana. Doca Street interrompeu a entrevista à Folha três vezes para falar ao celular. Tentava vender
um carro -"no mínimo R$ 20 mil". Doca Street mora em um apê de dois quartos no térreo
de um predinho de Pinheiros, em São Paulo. Doca
Street está casado. A mulher dele, Marilena Street,
é corretora de imóveis -"porque precisamos do dinheiro", diz. Doca Street lança, na próxima segunda, o livro "Mea Culpa", sobre como matou Ângela
Diniz, a Pantera de Minas, há 30 anos, um curto-circuito no Brasil.
(LAURA CAPRIGLIONE)
"Doca, Cabo Frio está com
você", lê-se no papel fotográfico amarelado que registra a
manifestação de 500 pessoas
diante da delegacia. Feministas
levaram às ruas cartazes e faixas com os dizeres "Quem Ama
não Mata". Queriam desqualificar a alegação de que foi amor
demais a causa do homicídio e
"mostrar que a sociedade não
mais aceitava que homens tivessem direito de vida e morte
sobre as mulheres".
"Você compraria um carro de
Doca Street?" E um livro? Como vendedor de veículos, atividade à qual se dedicou após o
crime e que só interrompeu nos
cinco anos de cadeia, Doca conta 5.000 negócios em 14 anos
-um por dia. Doca Street espera o mesmo sucesso do livro.
Ele jura que, se der lucro,
"Mea Culpa" financiará uma
ONG para "presos velhinhos
que saem da cadeia sem nenhum apoio". Cinco minutos
depois, será para "ajudar as
criancinhas, filhas dos presos".
"Pra falar a verdade, não sei
ainda, mas estou entrando em
contato com gente que entende
desse assunto. Quero fazer alguma coisa para que minha vida tenha valido a pena."
Doca Street diz que não planeja reeditar o estilo de quando
aparecia em colunas sociais de
jornalistas como Ibrahim Sued,
sempre com "tuxedos" (ele rejeita o termo "smoking"), ar de
Humphrey Bogart, cigarro e copo de uísque com gelo na mão.
Em 1976, estava acostumado
a acordar com taças de champanhe Veuve Clicquot misturado a suco de laranja para rebater excessos de álcool e cocaína.
Trinta anos após matar a namorada Ângela Diniz em um
Brasil sem internet nem democracia (mas com a ditadura de
Ernesto Geisel), Raul Fernando do Amaral Street, 72, chama
a atenção: 1,86 m, esguio, basta
cabeleira branca, jaquetão azul
de seis botões, calça cáqui, mocassins e reflexos rápidos para
ser gentil -ele insiste em carregar a pasta da repórter. "Cavalheirismo não é machismo,
não é?", pergunta. Não, não é.
Doca é um homem educado.
Hoje, diz que só bebe cerveja e
que cigarros não são mais um
vício. Na entrevista, contudo,
foi atrás de um Marlboro, que
tragou gostosamente. Aproveitou para lembrar a mãe: "Cecilinha acabaria comigo se me
visse acender o cigarro de uma
mulher com o fogo do isqueiro
abaixo da linha do nariz dela".
"Vi o corpo da moça estendido no mármore da delegacia de
Cabo Frio. Parecia ao mesmo
tempo uma criança e boneca
enorme quebrada... Mas desde
o momento em que vi o seu cadáver tive imensa pena, não dela, boneca quebrada, mas de seu
assassino", disse Carlos Heitor
Cony, hoje colunista da Folha,
então trabalhando na revista
"Fatos & Fotos". Muito mais
gente teve pena de Doca.
Foram cinco tiros na cabeça,
30 de dezembro de 1976. "Me
abrace, pelo amor de Deus.
Amo você", implorou Doca. "Se
quiser me dividir com homens
e mulheres, pode ficar, corno",
teria dito Ângela. Ela emendou
com o arremesso de uma pasta
e uma pistola contra o rosto do
ofendido. A pasta abriu-se, a
arma caiu, Doca pegou-a e,
"quando me virei, xingando-a,
já estava atirando".
"Legítima defesa da honra."
A defesa de Doca -lista de notáveis da advocacia, com Evandro Lins e Silva, Artur Lavigne,
Técio Lins e Silva e José Carlos
Dias- foi tão eficiente em descrever Ângela como "Vênus
lasciva" movida a oceanos de
vodca e quilos de cocaína que
ele, no primeiro julgamento,
em 1979, foi condenado a dois
anos, com direito a sursis. Saiu
livre do tribunal e virou uma
espécie de herói nacional.
Ele se lembra: "Fiquei com
vergonha de ser absolvido. Não
entendi. Também não entendi
por que era aplaudido e por que
chovia mulher. Eu saía com
elas, não resistia -testosterona
no máximo-, mas não entendia. Um dia, uma moça me perguntou: "Como eu faço para te
seduzir?". Fomos para o motel,
tudo e tal, ela me disse: "Você é
o Doca ou não?". Confirmei, ela
me olhou decepcionada: "Puxa,
você nem me bateu?". Saiu insatisfeita. Outra vez, fui ao cinema, baita fila, o gerente me
viu: "Você não precisa ficar na
fila". Eu pensava: "Será que estou ficando louco? Vou dar
mais tiro por aí". (Doca ri)
O segundo julgamento foi em
1981. "As feministas fizeram
bom trabalho", avalia Doca. Pegou 15 anos, cumpriu três em
regime fechado, dois no semi-aberto, o resto em condicional.
"Fui condenado, muito bem.
Ainda bem que fui", ele diz. Para Doca, o Brasil entrou no caso
Doca Street de um jeito e saiu
de outro. "Digamos que foi
uma fronteira. Depois disso, o
Brasil melhorou, sim. Que
bom! Não se aceita mais que
um homem maltrate uma mulher. Vamos supor que eu não
esteja gostando dessa sua entrevista. Eu vou encher a sua
cara de porrada? Está certo?
Não está." Ainda bem.
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