São Paulo, domingo, 02 de julho de 2006

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GILBERTO DIMENSTEIN

Lula ameaça o Bolsa-Família?

Para sobreviver, programa teria de ser visto como um patrimônio nacional, e não como marca pessoal de Lula

O BOLSA-FAMÍLIA é o plano mais importante destinado a reduzir a pobreza já criado em toda a história do Brasil. O presidente Lula é um de seus principais responsáveis e, ao mesmo tempo, uma de suas principais ameaças.
Desde a semana passada, 11,1 milhões de famílias passaram a ser beneficiadas, atingindo 40 milhões de brasileiros. É um dos fatores que colaboraram para a redução do número de miseráveis e da desigualdade social: pequenas comunidades se desenvolvem economicamente, a matrícula escolar evolui, há melhora da saúde de mães e crianças. Estão até mesmo começando a captar a volta de migrantes para suas cidades, o que ajuda a reduzir os desafios sociais das regiões metropolitanas. Comparativamente a outras despesas sociais (como aposentadorias), o Bolsa-Família revela uma boa relação custo-benefício. É uma obra de engenharia social, mas ainda frágil e incompleta. Para ter consistência e garantir sua sobrevivência, precisaria ser vista por todos como um patrimônio nacional. Justamente aí reside o risco Lula. O que o presidente está fazendo é transformar o programa numa marca pessoal, de olho nos votos. Nisso tem sido muito bem-sucedido, como mostrou na quinta a pesquisa Datafolha.

 

A distribuição de recursos é apenas o ponto de partida e, se ficar apenas nisso, não resistirá ao tempo e será bombardeada, apontada como esmola, mais um fardo no Orçamento; crítica que, por sinal, já existe. Exige-se uma complexa montagem de rede para que o beneficiário ganhe autonomia e não dependa eternamente de favores oficiais.
Nessa rede, costurada em níveis federal, estadual e municipal em parceria com as comunidades, a família deve receber os mais diversos apoios para ganhar autonomia. Depende, então, que muitos presidentes, governadores e prefeitos trabalhem em conjunto, cruzando as políticas públicas que vão da creche, pré-escola, formação profissional a microcrédito. É por isso que tais projetos deram certo em países como o México e, principalmente, o Chile.
Quem conhece um pouco de administração pública sabe como já é complicado secretários de uma mesma prefeitura desenvolverem articuladamente ações; imagine, então, quando se envolvem tantos níveis de poder e com tantos interesses, lícitos e ilícitos, distintos. Mesmo com muita gente desprendida e competente, a montagem desse tipo de rede seria complexa e arrastada, cujos esforços demorariam para apresentar resultados.
 

Se o Bolsa-Família se converter, como está se convertendo, no símbolo de um indivíduo, sua força está em risco de ser boicotada por outros governos. Esse programa tem tudo para ser protegido pelos mais diversos padrinhos por causa de suas múltiplas influências.
Suas origens são as mais variadas e englobam os principais partidos como PSDB, PT e PFL. Cristovam Buarque, então no PT, e José Roberto Teixeira (PSDB) lançaram experiências semelhantes de renda mínima, respectivamente, em Brasília e Campinas. Essas experiências localizadas se expandiram, graças, em parte, ao fato de que Antônio Carlos Magalhães criou um fundo, no Congresso, que drenou recursos para o Bolsa-Escola, assumido pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, cujos assessores estudavam a junção de todas as bolsas em torno da família. Isso era o resultado de anos de estudos acadêmicos sobre a ineficiência de políticas sociais devido à dispersão de dinheiro.
A idéia foi aprimorada por vários prefeitos. Marta Suplicy conseguiu aglutinar num só pagamento recursos de diferentes origens, aumentando o valor do benefício. Na gestão Serra, avançou-se na oferta de serviços a famílias; o resultado disso se vê, por exemplo, na menor quantidade (ainda inaceitável, claro) de crianças nos semáforos.
 

Lula ampliou e melhorou a consistência desses programas. Seria tão desonesto não reconhecer esse mérito como deixar de ver que o Bolsa-Família é uma herança positiva que ele recebeu de FHC. Se todos fossem reconhecidos e o programa virasse um projeto de nação, um patrimônio coletivo, o mérito de Lula, no futuro, seria ainda maior.
 

P.S. - Alguns personagens foram importantes (e poucos sabem) nesse processo. Agop Kayayan e Jorge Werthein, que comandaram, respectivamente, Unicef e Unicef, patrocinaram avaliações do Bolsa-Escola e as divulgaram dentro e fora do Brasil, ajudando a dar-lhe a credibilidade necessária para ganhar escala nacional. O sociólogo Vilmar Faria, já morto, foi o grande pensador e construtor de um plano de prioridade às famílias dentro do governo FHC ao lado de Ruth Cardoso. Como professor da USP e da Unicamp, ele influenciou muitas das pessoas, algumas do PT, que estiveram direta ou indiretamente buscando a sofisticação do assistencialismo.

gdimen@uol.com.br

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