São Paulo, terça-feira, 02 de agosto de 2011

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JAIRO MARQUES

Gosto muito de você, leãozinho


O que me incomoda mais na história de Ariel é a forma como ganhou uma aura quase santificada


FIQUEI BEGE ao ver toda a comoção do povo com a morte do leão paraplégico Ariel, que fez a passagem na semana passada. O bicho era criado dentro de um apartamento praticamente tratado a pão de ló, mas não resistiu ao avanço de sua enfermidade -uma doença degenerativa-, que o afastou da selva ou da jaula, não sei dizer ao certo.
Não tenho nada contra bichanos, adoro cachorro, mas admito que não deslizou de mim nenhuma lágrima pelo pobre. No "Animal Planet", já vi leões sendo mortos de uma forma muito mais trágica e desalentadora.
Tenho certo receio de estarmos levando a sério demais aquela frase que se fala nas horas de injustiças, de malfeitos, de raiva, de inveja, de pressão, de desespero, de saco cheio: "É por isso que gosto mais de bicho do que de gente".
O que me incomoda mais na história de Ariel não é a luta para tentar salvá-lo, evidentemente, mas a forma como o animal ganhou uma aura quase santificada por estar ali, em sofrimento, perdendo, aos poucos, os movimentos, as capacidades vitais. Isso o fez merecedor de atenção midiática invejável.
Já conheci muito "serumano", também acometido por perrengues degenerativos que não teve a atenção nem do vizinho para dar uma ajudinha para limpar a baba que teimava em escorrer da boca aberta. O leão conseguiu acesso a tratamento revolucionário, bife de primeira a cada, sei lá, meia hora para encher a barriguinha, correntes de orações e, depois de morto, vaquinha para cremação do corpo.
Enquanto o bichano foi acolhido com amor e dedicação pela dona e pelo Brasil, milhares de crianças com deficiência se amontoam em abrigos à espera de adoção -e muito mais espera, na maioria dos casos, do que as de crianças "normais"-para que ganhem um lar ou uma selva, uma cabana.
As crianças mal-acabadinhas aguardam alguém que as ame, as mande para a funilaria dar uma arrumadinha nas partes avariadas, que dê a elas aprendizado, dignidade e força para rugir contra preconceitos, para rugir por acessos, por aceitação na sociedade.
Bichos em sofrimento mexem mesmo com nossas emoções e nossa sensibilidade humana, afinal, ele não pode falar, não pode expressar nem indicar o que tanto o azucrina a vida. Ver o Ariel com olhar quase se apagando no colo de sua tratadora despertava na gente uma vontade de ajudar. Mas, que me perdoem os maribondões pretos da defesa dos animais, o seu Casseta já dizia que "mãe é mãe, paca é paca".
Todos os dias, acontecem acidentes que deixam primos, tios, amigos e conhecidos capengas das partes motoras. É gente que fica na cama, às vezes, por meses até que se colem os ossos e que o rejunte dê conta de harmonizar o ânimo de retomar o cotidiano com a necessidade de encarar as savanas atrás de presa.
Na cabeça nossa do dia a dia, esses leões são sempre muito mais fortes e capazes de chacoalhar o pelo e afiar as garras. E, assim, deixa-se a visita de lado, o telefonema para o final de semana, a lembrancinha para o Natal. E, quando os leões ficam velhos e dados como incapazes, achamos que eles querem o sossego da alcateia apenas. Tem algo errado no mundo animal.

jairo.marques@grupofolha.com.br


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