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São Paulo, quinta-feira, 02 de outubro de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

A testemunha que depôs a relatora

Neste espaço, já tratei inúmeras vezes da "língua" dos títulos jornalísticos. Costumo dizer que os jornais escrevem em português, mas, na hora das manchetes, preferem o "titulês".
Nas Redações, circula esta máxima: "Título bom é título que cabe". Como o espaço é predeterminado, o redator precisa fazer caber nele a frase que sintetiza a notícia, o que muitas vezes exige a tradução do português para o "titulês". Dessa peripécia resultam pérolas como "Escort não é páreo a Astra" ou "Promotoria investiga contas fora do país de Maluf".
No penúltimo exemplo, é evidente que a inadequada preposição "a" entrou no lugar de "para", que, por ter quatro letras, faria o título explodir. Como título bom é título que cabe...
No último exemplo, a necessidade de dividir o título em três linhas não permitiu que a frase fosse escrita de acordo com o que se pretendia dizer. Moral da história: o já multimilionário Maluf foi presenteado com um país.
No início desta semana, um jornal trazia este título: "Testemunha que depôs a relatora da ONU é morta". Pobre leitor, obrigado a contorcionismos para entender a frase! Como pôde uma testemunha depor uma relatora da ONU? Só depois que se lê o texto é que fica claro o que se quis dizer: foi morta a pessoa que prestou depoimento à paquistanesa Asma Jahangir, relatora da ONU.
O que dificulta a compreensão do referido título é a associação de dois fatores. Um deles é o emprego da regência "depor a alguém" (ou "a uma instituição"), com que se pretende dizer que uma pessoa presta depoimento em algum lugar ou perante alguma autoridade. Apesar de disseminado na imprensa, esse uso de "depor" não é registrado nos dicionários (os de sinônimos e os de regência). O "Dicionário de Verbos e Regimes", de Francisco Fernandes, diz que, com o sentido de "prestar declarações perante autoridade ou em justiça", "depor" é intransitivo, o que ocorre, por exemplo, em "Ele depôs na CPI" ou "Ela deporá perante o juiz".
O segundo fator é a recorrente falta (nos títulos) de artigo antes de substantivos não determinados ("Lula diz a empresária que..."). Como não se diz quem é a empresária, não se emprega o artigo antes desse substantivo e, consequentemente, também não se emprega o acento grave. No masculino, teríamos algo como "Lula diz a empresário que...".
No caso do verbo "depor" ("Testemunha que depôs a relatora..."), o redator somou os dois fatores, ou seja, empregou a regência "depor a alguém" e não empregou o artigo antes de "relatora", por não haver (no título) a identificação da relatora. O resultado não é dos melhores. A primeira impressão é que a testemunha destituiu a relatora, demitiu-a, defenestrou-a. A redação ideal talvez fosse "Testemunha que depôs perante (a) relatora da ONU..." ou "Testemunha que prestou depoimento a [ou "à'] relatora...". O problema é que "título bom é título que cabe"...
O atento leitor Agenor Soares dos Santos diz que, diferentemente do que afirmei na semana passada, o "Dicionário Prático de Regência Verbal", de Celso P. Luft, registra o verbo "dar" com o sentido de "ser possível". É verdade, caro Agenor; cochilei. O dicionário de Luft dá dois exemplos desse uso, ambos giriescos. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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