São Paulo, sábado, 02 de outubro de 2004

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EFEITO COLATERAL

Fabricante contestava indícios contra o uso do Vioxx num caso em que o marketing venceu a ciência

Estudos mostram riscos desde 2000

BARRY MEYER
DO "NEW YORK TIMES"

Por anos, acumularam-se indícios de que o analgésico Vioxx poderia aumentar o risco de ataques cardíacos. Por anos, a fabricante do medicamento, Merck, contestou essas conclusões.
Na semana passada, as defesas da Merck começaram a ruir, com o surgimento de provas irrefutáveis, em um estudo da própria empresa, indicando que o Vioxx duplicava as chances de ataques cardíacos para usuários de longo prazo. Anteontem, a Merck anunciou que retiraria o remédio do mercado em todo o mundo.
De muitas maneiras, a curta mas extremamente lucrativa história do Vioxx pode terminar sendo um exemplo do triunfo do marketing sobre a ciência.
Ainda que indícios preocupantes tenham começado a surgir pouco depois da aprovação do medicamento, em 1999, as vendas do Vioxx dispararam para a marca dos US$ 2,5 bilhões, no ano passado, com base em uma das mais intensas campanhas de marketing direto ao consumidor já realizadas para um medicamento vendido sob receita.
Nos primeiros seis meses do ano, a Merck gastou um total estimado em US$ 45 milhões em publicidade do remédio.
Na quinta-feira, alguns pesquisadores que estudam o Vioxx há muito tempo se declararam surpresos com o fato de que tenha demorado tanto para que a decisão de eliminá-lo fosse tomada.
"É um terrível testemunho quanto ao poder do marketing", disse Jerry Avorn, diretor da divisão de pesquisa do Brigham and Women's Hospital, em Boston.
Sinais de riscos do Vioxx começaram a surgir pouco depois que a FDA (agência federal norte-americana que fiscaliza alimentos e remédios), aprovou sua chegada ao mercado, em 1999, para tratar dores causadas pela artrite e por outros problemas. O remédio não controlava a dor melhor do que concorrentes, mas reduzia a incidência de úlceras e de sangramento gastrointestinal.
Em 2000, a Merck submeteu à FDA estudo demonstrando que usuários de Vioxx corriam risco de ataques cardíacos e derrames quatro ou cinco vezes maiores do que usuários do naproxen, um analgésico tradicional. Os autores do estudo, financiado pela Merck, teorizavam que os resultados, na verdade, demonstravam efeitos benéficos do naproxen, e não efeitos adversos do Vioxx.
Em 2001, a FDA alertou a Merck de que suas campanhas promocionais estavam minimizando o risco cardiovascular do Vioxx, e divulgando de maneira errônea os resultados do estudo de 2000. No ano seguinte, a agência exigiu que a Merck acrescentasse ao rótulo do remédio um alerta quanto aos riscos intensificados de ataque cardíacos e derrame.
Em 2002, dois estudos indicaram que o naproxen não tinha efeito protetor perceptível sobre o sistema cardiovascular, e que o Vioxx, quando consumido em dosagens elevadas, intensificava riscos de distúrbios cardíacos.
A próxima grande descoberta científica sobre o Vioxx surgiu um ano mais tarde, quando um novo estudo financiado pela Merck, com base em levantamentos de fichas médicas, concluiu que o Vioxx, mesmo em dosagens moderadas, aumentava os riscos cardiovasculares. A Merck contestou as conclusões do estudo.
Em agosto, a Kaiser Permanente, organização de saúde sem fins lucrativos, informou que uma revisão nas fichas de seus pacientes indicava que aqueles que tomavam Vioxx em dosagens superiores a 25 miligramas enfrentavam riscos de ataques cardíacos e doenças cardiovasculares três vezes superiores à média.
A Merck vinha sustentando há muito que os primeiros estudos, como o da Kaiser Permanente, não podiam ser considerados porque eram baseados em fichas médicas, e não em testes clínicos nos quais os efeitos de um remédio são medidos em tempo real e usando um grupo de controle ao qual é administrado um placebo.
Na semana passada, a Merck recebeu más notícias dos pesquisadores envolvidos em um teste desse tipo. O teste, preparado para demonstrar que o Vioxx era efetivo para prevenir pólipos cancerosos no cólon, descobriu, em lugar disso, que o remédio aumentava o risco de ataques cardíacos e derrames.
Janet Skidmore, porta-voz da Merck, disse anteontem que o estudo sobre câncer de cólon foi o primeiro teste clínico a demonstrar esse tipo de resultado, e que a empresa agiu imediatamente ao receber os dados.
"Foi a primeira vez que essa espécie de estudo, um estudo científico padronizado, demonstrou essa espécie de resultado depois de 18 meses de tratamento", disse.
Mas David Campen, diretor de informação e utilização de medicamentos e informações médicas no Kaiser, disse acreditar que os resultados dos testes clínicos foram apenas mais um tijolo na muralha de provas contra o Vioxx. "Creio que concluíram que seria simplesmente arriscado demais para a empresa manter o medicamento no mercado."


Tradução de Paulo Migliaccio

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