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GILBERTO DIMENSTEIN
Lula na Cidade do Sol
Depois de se submeter, em
2003, a duas operações na
cabeça, o maestro Sílvio Bacarelli,
sempre cheio de compromissos e
projetos, começou a sentir um estranho desânimo. Não queria
mais sair de casa, preferia ficar no
quarto, deitado na cama, sem ver
ninguém. "Nunca tinha sentido
nada parecido." Tratada com remédios, a depressão perdurou por
seis meses.
Ele atribui parte de sua recuperação ao prazer de ensinar música. "Ficava pensando nos ensaios
e nas apresentações." Pensava,
em particular, na experiência que
desenvolve, desde 1996, na favela
de Heliópolis, onde comanda
uma orquestra sinfônica. "Na cama, eu imaginava os alunos me
esperando."
Passada a depressão, ele voltou
a freqüentar regularmente Heliópolis, ampliou o número de matrículas e planejou uma nova sede. Neste ano, resolveu oferecer
um programa de balé. As aulas
serão dadas por Ana Botafogo,
uma das mais importantes bailarinas brasileiras. "Quando decidi
ensinar música erudita a jovens
de favela, alguns riram, outros
acharam que eu estava doido",
conta Bacarelli, hoje com 74 anos
- e muito bem de saúde.
À primeira vista, uma bailarina
do porte de Ana Botafogo dançando na favela parece exótico.
Tão exótico quanto um dos alunos de Bacarelli -o contrabaixista Adriano Costa Chaves- estudar hebraico para fazer um estágio na Filarmônica de Israel,
convidado pessoalmente pelo
maestro Zubin Meta.
Com 120 mil habitantes, a
maioria dos quais vivendo abaixo da linha da pobreza, Heliópolis (que, em grego, significa "Cidade do Sol", o que sugere uma
ironia) é a maior favela de São
Paulo, cuja imagem está associada à degradação urbana e, especialmente, à violência.
Pela primeira vez, eles recebem
um presidente. Nesta segunda-feira, Lula é esperado em Heliópolis para inaugurar um centro
de cultura multimídia destinado
a jovens. Se tivesse tempo e disposição para entender o que acontece à sua volta, veria que é mais fácil combater a miséria partindo
daquele modelo de fortalecimento local, construído numa favela,
do que partindo da distante Brasília, com suas tramóias.
O aparente exotismo da bailarina ou do contrabaixista que estuda hebraico é sinal da engenhosidade da rede de confiança entre
as pessoas, que não espera a salvação dos governos. No mês passado, graças a uma parceria entre
o mais importante crítico literário
brasileiro, Antônio Cândido, e o
arquiteto Ruy Ohtake a comunidade inaugurou uma biblioteca,
trazendo de Shakespeare a Eça de
Queiroz, passando por Clarice
Lispector e Graciliano Ramos.
Mas também se oferecem jornais
com classificados de emprego. Como na maioria das regiões metropolitanas, a maioria dos jovens
dali está desocupada.
Autor de alguns dos mais comentados projetos arquitetônicos
realizados em São Paulo, Ruy
nunca imaginou que seria chamado a embelezar favelas. "Sou
de uma geração de arquitetos formados na década de 70 que acreditavam que as favelas eram um
problema passageiro." Foi convidado por uma liderança local -
o pernambucano João Miranda
- para tirar um pouco o ar sombrio, sem cores, de Heliópolis. Resolveu, então, transformar a fachada de 270 casas da rua principal numa grande intervenção colorida. Em conjunto com os moradores, fez um imenso painel
contíguo. Quando estavam pintando as casas, João Miranda admirava-se com as várias tonalidades de azul. "Ô seu Ruy, nunca
vi um azul assim!" Diante do perplexo arquiteto, ele explicou:
"Pensei que só existisse uma cor
azul, só uma; aqui tem muitas".
Pela primeira vez, Ohtake tinha
testemunhado a surpresa de um
adulto que descobria as tonalidades das cores.
A descoberta das tonalidades
das cores é apenas uma imagem
que representa a descoberta das
várias idéias quer podem ser costuradas numa comunidade.
Para fazer Eça de Queiroz, Ana
Botafogo, Bach, Shakespeare e
Zubin Meta irem para Heliópolis,
com seu cenário sem cores e repleto de violência, montou-se um
modelo passível de reprodução
em qualquer lugar -um grupo
de pessoas que se juntam para valorizar o conhecimento sem esperar as soluções do poder público.
Lá, aliás, é o lugar em que o diretor de uma escola municipal -
Brás Rodrigues Nogueira- faz
curso de pós-graduação (e já está
dando palestras) sobre a arte de
envolver a comunidade no apoio
à educação.
Todas essas experiências não
significam que Heliópolis se tenha convertido na Cidade do Sol.
"O modelo de sucesso de muitas
das crianças são os traficantes e
os delinqüentes", diz o maestro
Bacarelli. Ele mostra, porém, que,
entre as sombras, é possível captar alguns raios. Não é muito,
mas é melhor do que as trevas que
estão vindo de Brasília.
PS - Esta coluna nasceu menos
da visita de Lula do que de um
número. Até sexta-feira à noite,
ocasião do fechamento desta coluna, nenhum assassinato tinha
sido noticiado nos últimos 30 dias
em Heliópolis, onde a queda da
taxa de homicídios já atingiu, nos
últimos três anos, cerca de 60%.
Nem de longe se pode imaginar
que essa situação seja apenas um
efeito da ação da polícia. É o efeito da música erudita, da literatura -e, acima de tudo, das várias
tonalidades de azul.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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