São Paulo, quinta-feira, 03 de abril de 2008

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PASQUALE CIPRO NETO

"Uma vez que ele ganhe um aspecto distinto..."

A decoreba pode armar muitas camas-de-gato, cujas vítimas são sempre os próprios "decorebistas"

NA PROVA DE 2008 da UFSCar, encontra-se este texto de Eduardo Giannetti ("Auto-Engano"), do qual destaco esta passagem: "Sob a ótica do senso comum, conhecimento tem a ver com familiaridade. (...) Se você está acostumado com alguma coisa (...), então você pode dizer que a conhece. O desconhecido, por oposição, é o estranho. O grau de conhecimento, nessa perspectiva, é função do grau de familiaridade: quanto mais familiar, mais conhecido. (...) Mas, se o objeto (...) ganha um aspecto distinto ou se comporta de modo diferente daquele a que estou habituado, perco a segurança que tinha e...".
Uma das questões pedia ao candidato que assinalasse a alternativa que mantém o sentido e a construção sintática do trecho "se ele ganha um aspecto distinto, perco a segurança que tinha". As alternativas eram estas: "a) Embora ele ganhe um aspecto distinto, perco...; b) Mas ele ganha um aspecto distinto, aí perco...; c) Ele ganha, contudo, um aspecto distinto, e perco...; d) À medida que ele ganha um aspecto distinto, perco...; e) Uma vez que ele ganhe um aspecto distinto, perco...".
Volte ao fragmento de Giannetti, por favor, e localize no texto e no contexto a passagem que deve ser reescrita. É cabível ver esse "se" com o valor de "caso", ou seja, com matiz condicional ("Mas, caso o objeto ganhe um aspecto distinto, perco...").
Essa análise talvez já baste para o candidato eliminar de bate-pronto as alternativas "a", "b" e "c", nas quais se estabelece nexo de contraste, oposição (na "a", com o conectivo "embora"; na "b" e na "c", com "mas" e "contudo", respectivamente).
Cabe lembrar que nessa passagem do texto de Giannetti existe oposição, sim, mas... Mas é aí que entra a leitura atenta. Quando Giannetti diz "...mas, se o objeto ganha um aspecto distinto, perco a segurança que tinha", o nexo de oposição que se inicia com a conjunção "mas" se conclui em "perco a segurança que tinha". A passagem original de Giannetti equivale a "mas perco a segurança que tinha se o objeto ganha um aspecto distinto". Note que, quando se põe a oração "se o objeto ganha um aspecto distinto" dentro da que começa com "mas", ocorre a virgulação dupla ("Mas, se o objeto ganha [...] distinto, perco..."). Nesse caso e nos afins, as vírgulas (duplas, insisto) funcionam como condutor do fio que vai ligando os termos e as orações do período.
Mas voltemos à questão. Temos de reescrever a passagem destacada ("Se ele ganha um aspecto distinto, perco a segurança") mantendo o sentido e a construção sintática, o que, no caso, significa manter o nexo condicional. Pois é aí que a decoreba pode armar uma cama-de-gato, cuja vítima é o próprio "decorebista". Tradução: quem se põe a memorizar as conjunções e as locuções e suas respectivas "classificações" ("se" é isto, "uma vez que" é aquilo, "como" é aquilo outro) está a um passo do cadafalso em questões como a da UFSCar.
Na resposta correta ("Uma vez que ele ganhe um aspecto distinto, perco..."), ocorre a locução "uma vez que", freqüentemente usada com valor causal (com o verbo no indicativo -"Não irei, uma vez que não fui convidado"). Na resposta, o verbo está no subjuntivo ("Uma vez que ele ganhe..."), o que estabelece o nexo condicional. É isso.


inculta@uol.com.br

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