São Paulo, segunda-feira, 03 de maio de 2004

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ÁLCOOL

Estudiosos do uso de drogas apontam risco de manipulação em entidade financiada por uma das maiores produtoras de cerveja

ONG da AmBev divide os especialistas

FABIANE LEITE
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Antes mesmo de ser oficializada no país, a ONG criada por uma das maiores indústrias de cerveja do mundo gera um intenso debate no meio científico.
Está marcado para julho o lançamento do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), da AmBev (dona das marcas Skol, Brahma e Antarctica). A idéia é que o Cisa oferte um banco de dados sobre bebidas alcoólicas e saúde.
Desde março, no entanto, quando começou a circular a notícia de que um renomado especialista em álcool do Hospital das Clínicas de São Paulo, o psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, 49, assumiria a entidade, a discussão não pára.
É possível acreditar em dados reunidos com o patrocínio da indústria do álcool? Mas não é plausível que o produtor de uma mercadoria que pode ser nociva assuma sua responsabilidade social?
São questões como essas que correm no meio de profissionais que trabalham com álcool.
As críticas emanam principalmente da Abead (Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas), mas mesmo alguns especialistas historicamente ligados à redução de danos, que defendem medidas menos restritivas ao álcool, criticam o projeto.
"O objetivo da indústria é aumentar o consumo, o que viabilizará o aumento de seus lucros. Portanto, objetivos opostos e irreconciliáveis", diz mensagem da diretoria e do conselho consultivo da Abead, divulgada no seu site oficial, que veta a parceria entre seus membros e a indústria.
Em março a associação decidiu "sugerir" que Andrade pedisse o afastamento da presidência da comissão científica do 16º congresso da entidade e licença do conselho consultivo -o que foi atendido pelo psiquiatra.
"Não é possível ser fiel a dois deuses", afirma Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo, um dos conselheiros. "Se a indústria quisesse melhorar os dados, que desse o dinheiro à Fapesp [agência de fomento do governo paulista]."

Manipulação
O que assombra alguns dos críticos é o risco de manipulação. O fantasma é o histórico desastroso de associação entre a indústria do cigarro e cientistas, que na década de 90 produziu falsos artigos científicos gerando divulgações mentirosas sobre não haver risco no fumo passivo.
"Quando os objetivos são os dados científicos, o que a gente vê é que manipulam", afirma Ana Glória Melcop, da Rede Brasileira de Redução de Danos. Por isso, opina, é melhor a associação para ações concretas, como atividades que melhorem a segurança no tráfego, por exemplo.
"Há um óbvio conflito de interesse. Esses centros acabam virando instrumentos de marketing. É muita ingenuidade acreditar que a indústria dará dinheiro para mostrar os desastres que ela mesma produz", opina Martin Raw, editor da revista inglesa "Addiction" por sete anos.

Tolerância
No centro do debate, Andrade pede tolerância, quer que os críticos esperem os resultados antes de falarem.
Fundador há 23 anos do Grea (Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas) do Hospital das Clínicas e membro do conselho da Comissão Interamericana para Controle do Abuso de Drogas, Andrade diz que a idéia do Cisa foi sua, não da AmBev. Afirma que procurou, sem sucesso, outros patrocinadores, públicos e privados.
O Grea já havia recebido auxílio de US$ 35 mil da indústria, via Associação Brasileira de Bebidas (que reúne o setor de destilados, principalmente), para uma reforma realizada no setor em 1997.
"Não adianta ficar brigando. É melhor uma parceria. O governo não tem dinheiro para ajudar. Também tinha resistência. Mas hoje o setor está mais responsável, vide [as campanhas] contra beber e dirigir", diz Andrade sobre a indústria de bebidas.
"Receber dinheiro da indústria de remédios pode?", continua o médico, provocando seus críticos. Eles dizem que pode, pois o remédio visa o bem do paciente.
O psiquiatra afirma estar contornando as resistências que encontrou à parceria, o que ocorreu até dentro do próprio Grea -pesquisadores do grupo dizem temer que o prestígio da instituição vá "para o ralo".
Andrade tentou conversar com vários especialistas, mas poucos aceitaram o debate.
"O álcool faz parte da vida e cabe às grandes indústrias ter responsabilidade", afirma Júlia Maria D'Andrea Greve, livre-docente do departamento de ortopedia e traumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), que aceitou convite do médico para integrar o conselho do Cisa.
Para Marco Segre, da Comissão de Bioética do HC, o lado bom da parceria é a possibilidade de benefício à comunidade, de "convergência de interesses", não apenas de conflito. "Mas devemos acompanhar para ver no que dá."
Andrade destaca que não é objetivo fazer pesquisa. Por segurança, registrou um contrato em que garante a independência para divulgar qualquer resultado, sejam os reunidos ou produzidos pela ONG. "Perguntei à AmBev: vocês bancam a verdade? Até agora toparam."


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