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ÁLCOOL
Estudiosos do uso de drogas apontam risco de manipulação em entidade financiada por uma das maiores produtoras de cerveja
ONG da AmBev divide os especialistas
FABIANE LEITE
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL
Antes mesmo de ser oficializada no país, a ONG criada por uma
das maiores indústrias de cerveja
do mundo gera um intenso debate no meio científico.
Está marcado para julho o lançamento do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa),
da AmBev (dona das marcas Skol,
Brahma e Antarctica). A idéia é
que o Cisa oferte um banco de dados sobre bebidas alcoólicas e
saúde.
Desde março, no entanto, quando começou a circular a notícia de
que um renomado especialista
em álcool do Hospital das Clínicas
de São Paulo, o psiquiatra Arthur
Guerra de Andrade, 49, assumiria
a entidade, a discussão não pára.
É possível acreditar em dados
reunidos com o patrocínio da indústria do álcool? Mas não é plausível que o produtor de uma mercadoria que pode ser nociva assuma sua responsabilidade social?
São questões como essas que
correm no meio de profissionais
que trabalham com álcool.
As críticas emanam principalmente da Abead (Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas), mas mesmo alguns
especialistas historicamente ligados à redução de danos, que defendem medidas menos restritivas ao álcool, criticam o projeto.
"O objetivo da indústria é aumentar o consumo, o que viabilizará o aumento de seus lucros.
Portanto, objetivos opostos e irreconciliáveis", diz mensagem da
diretoria e do conselho consultivo
da Abead, divulgada no seu site
oficial, que veta a parceria entre
seus membros e a indústria.
Em março a associação decidiu
"sugerir" que Andrade pedisse o
afastamento da presidência da comissão científica do 16º congresso
da entidade e licença do conselho
consultivo -o que foi atendido
pelo psiquiatra.
"Não é possível ser fiel a dois
deuses", afirma Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de
São Paulo, um dos conselheiros.
"Se a indústria quisesse melhorar
os dados, que desse o dinheiro à
Fapesp [agência de fomento do
governo paulista]."
Manipulação
O que assombra alguns dos críticos é o risco de manipulação. O
fantasma é o histórico desastroso
de associação entre a indústria do
cigarro e cientistas, que na década
de 90 produziu falsos artigos científicos gerando divulgações mentirosas sobre não haver risco no
fumo passivo.
"Quando os objetivos são os dados científicos, o que a gente vê é
que manipulam", afirma Ana
Glória Melcop, da Rede Brasileira
de Redução de Danos. Por isso,
opina, é melhor a associação para
ações concretas, como atividades
que melhorem a segurança no
tráfego, por exemplo.
"Há um óbvio conflito de interesse. Esses centros acabam virando instrumentos de marketing. É muita ingenuidade acreditar que a indústria dará dinheiro
para mostrar os desastres que ela
mesma produz", opina Martin
Raw, editor da revista inglesa
"Addiction" por sete anos.
Tolerância
No centro do debate, Andrade
pede tolerância, quer que os críticos esperem os resultados antes
de falarem.
Fundador há 23 anos do Grea
(Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas) do Hospital das Clínicas e membro do conselho da Comissão Interamericana para Controle do Abuso de
Drogas, Andrade diz que a idéia
do Cisa foi sua, não da AmBev.
Afirma que procurou, sem sucesso, outros patrocinadores, públicos e privados.
O Grea já havia recebido auxílio
de US$ 35 mil da indústria, via Associação Brasileira de Bebidas
(que reúne o setor de destilados,
principalmente), para uma reforma realizada no setor em 1997.
"Não adianta ficar brigando. É
melhor uma parceria. O governo
não tem dinheiro para ajudar.
Também tinha resistência. Mas
hoje o setor está mais responsável,
vide [as campanhas] contra beber
e dirigir", diz Andrade sobre a indústria de bebidas.
"Receber dinheiro da indústria
de remédios pode?", continua o
médico, provocando seus críticos.
Eles dizem que pode, pois o remédio visa o bem do paciente.
O psiquiatra afirma estar contornando as resistências que encontrou à parceria, o que ocorreu
até dentro do próprio Grea
-pesquisadores do grupo dizem
temer que o prestígio da instituição vá "para o ralo".
Andrade tentou conversar com
vários especialistas, mas poucos
aceitaram o debate.
"O álcool faz parte da vida e cabe às grandes indústrias ter responsabilidade", afirma Júlia Maria D'Andrea Greve, livre-docente
do departamento de ortopedia e
traumatologia da Faculdade de
Medicina da Universidade de São
Paulo (FMUSP), que aceitou convite do médico para integrar o
conselho do Cisa.
Para Marco Segre, da Comissão
de Bioética do HC, o lado bom da
parceria é a possibilidade de benefício à comunidade, de "convergência de interesses", não apenas de conflito. "Mas devemos
acompanhar para ver no que dá."
Andrade destaca que não é objetivo fazer pesquisa. Por segurança, registrou um contrato em
que garante a independência para
divulgar qualquer resultado, sejam os reunidos ou produzidos
pela ONG. "Perguntei à AmBev:
vocês bancam a verdade? Até agora toparam."
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