São Paulo, segunda-feira, 03 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MOACYR SCLIAR

O carro do futuro

Carro do futuro toma decisões sozinho.
Folha Veículos, 25 de junho

Ele se deu conta. O carro não queria ir lá. Com o que ele ficou furioso. Faça o que eu mandei imediatamente, gritou ele.

ATRAÍDO PELO anúncio, ele foi até a concessionária para conhecer aquilo que estava sendo apregoado como o carro do futuro -coisa que para ele parecia exagero publicitário. Não era. Tão logo viu o carro, e tão logo fez um test-drive, convenceu-se de que, de fato, com aquele automóvel o futuro tinha chegado. Não era só o conforto, o câmbio automático, os mil detalhes inovadores; era, sobretudo, o sistema de dirigir, inteiramente guiado por computador.
Computador com o qual ele podia manter um diálogo. Bastava dizer, por exemplo, "escritório", e o veículo já sabia que trajeto fazer -e fazia-o sozinho. Sensores especiais faziam com que se detivesse em sinais fechados ou diante de um pedestre incauto. Ou seja, o carro era capaz de evitar acidentes. Mais do que isso, fazia propostas: "Trânsito congestionado na avenida X. Sugiro tomarmos a rua Y".
E, de acordo, com o vendedor, esses conselhos sempre podiam ser seguidos; baseavam-se em observações de satélites e em complexos cálculos.
Enfim, era o carro de seus sonhos. O problema era o preço. Ele teria de desembolsar toda sua poupança. Poupança que estava destinada a uma outra finalidade: a compra de um apartamento. Tinha casamento marcado para o mês seguinte. Mas era tal o fascínio que o carro do futuro exercera sobre ele que não vacilou: comprou na hora e à vista.
Quando a noiva soube do que tinha acontecido, ficou furiosa. Anunciou que o noivado estava desfeito e que nunca mais queria vê-lo.
No momento, ele não se importou muito com a decisão. Era dono do carro do futuro, o que mais lhe importava? Se a ex-noiva não era capaz de aceitar as maravilhas do progresso, que fosse se catar. Ele continuaria dirigindo e dialogando com o computador.
Com o correr dos dias, contudo, começou a descobrir que não era bem assim. A verdade é que ele a amava, sentia falta dela. Já não podia dormir à noite, muitas vezes, sozinho, derramava sentidas lágrimas.
Resolveu pedir-lhe perdão. Venderia o carro, compraria o apartamento, casaria e pronto. O automóvel do futuro ficaria para o futuro. Assim, embarcou no automóvel e falou, para o computador: "Casa da noiva".
Nada. O veículo nem sequer deu a partida. Ele apercebeu-se do erro, corrigiu-se: "Casa da ex-noiva". Alguns segundos se passaram e a voz neutra, metálica, anunciou: "Trajeto inconveniente".
E aí ele se deu conta. O carro não queria ir lá. Por alguma razão (ciúmes?) resistia à idéia de voltar. Com o que ele ficou furioso. "Faça imediatamente o que eu mandei", gritou.
O carro pôs-se em movimento, mas, para sua surpresa, não estava seguindo o trajeto habitual. Ele ordenou que o veículo parasse. Não foi obedecido. O carro aparentemente estava fora de controle. O que o deixou apavorado. Num momento em que o veículo diminuiu a marcha, ele abriu a porta e saltou para fora. No momento seguinte o carro avançou a toda a velocidade contra um paredão e ali despedaçou-se com estrondo. E ele ficou de pé, olhando os destroços do carro do futuro. O futuro, como sabemos, é uma coisa muito incerta. Especialmente quando envolve paixões.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

Texto Anterior: Fique atento
Próximo Texto: Consumo: Consumidor reclama de juros cobrados no cartão de crédito
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.