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MOACYR SCLIAR
O carro do futuro
Carro do futuro toma decisões sozinho.
Folha Veículos, 25 de junho
Ele se deu conta. O carro não queria ir lá. Com o que ele ficou furioso. Faça o que eu mandei imediatamente, gritou ele.
ATRAÍDO PELO anúncio, ele foi
até a concessionária para conhecer aquilo que estava sendo apregoado como o carro do futuro -coisa que para ele parecia exagero publicitário.
Não era. Tão logo viu o carro, e tão
logo fez um test-drive, convenceu-se de que, de fato, com aquele automóvel o futuro tinha chegado. Não
era só o conforto, o câmbio automático, os mil detalhes inovadores; era,
sobretudo, o sistema de dirigir, inteiramente guiado por computador.
Computador com o qual ele podia
manter um diálogo. Bastava dizer,
por exemplo, "escritório", e o veículo já sabia que trajeto fazer -e fazia-o sozinho. Sensores especiais faziam
com que se detivesse em sinais fechados ou diante de um pedestre incauto. Ou seja, o carro era capaz de
evitar acidentes. Mais do que isso,
fazia propostas: "Trânsito congestionado na avenida X. Sugiro tomarmos a rua Y".
E, de acordo, com o
vendedor, esses conselhos sempre
podiam ser seguidos; baseavam-se
em observações de satélites e em
complexos cálculos.
Enfim, era o carro de seus sonhos.
O problema era o preço. Ele teria de
desembolsar toda sua poupança.
Poupança que estava destinada a
uma outra finalidade: a compra de
um apartamento. Tinha casamento
marcado para o mês seguinte. Mas
era tal o fascínio que o carro do futuro exercera sobre ele que não vacilou: comprou na hora e à vista.
Quando a noiva soube do que tinha acontecido, ficou furiosa. Anunciou que o noivado estava desfeito e
que nunca mais queria vê-lo.
No momento, ele não se importou
muito com a decisão. Era dono do
carro do futuro, o que mais lhe importava? Se a ex-noiva não era capaz
de aceitar as maravilhas do progresso, que fosse se catar. Ele continuaria dirigindo e dialogando com o
computador.
Com o correr dos dias, contudo,
começou a descobrir que não era
bem assim. A verdade é que ele a
amava, sentia falta dela. Já não podia dormir à noite, muitas vezes, sozinho, derramava sentidas lágrimas.
Resolveu pedir-lhe perdão. Venderia o carro, compraria o apartamento, casaria e pronto. O automóvel do
futuro ficaria para o futuro.
Assim, embarcou no automóvel e
falou, para o computador: "Casa da
noiva".
Nada. O veículo nem sequer deu a
partida. Ele apercebeu-se do erro,
corrigiu-se: "Casa da ex-noiva". Alguns segundos se passaram e a voz
neutra, metálica, anunciou: "Trajeto
inconveniente".
E aí ele se deu conta. O carro não
queria ir lá. Por alguma razão (ciúmes?) resistia à idéia de voltar. Com
o que ele ficou furioso. "Faça imediatamente o que eu mandei", gritou.
O carro pôs-se em movimento,
mas, para sua surpresa, não estava
seguindo o trajeto habitual. Ele ordenou que o veículo parasse. Não foi
obedecido. O carro aparentemente
estava fora de controle. O que o deixou apavorado. Num momento em
que o veículo diminuiu a marcha, ele
abriu a porta e saltou para fora. No
momento seguinte o carro avançou
a toda a velocidade contra um paredão e ali despedaçou-se com estrondo. E ele ficou de pé, olhando os destroços do carro do futuro. O futuro,
como sabemos, é uma coisa muito
incerta. Especialmente quando envolve paixões.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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