São Paulo, terça-feira, 03 de agosto de 2010

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JAIRO MARQUES

A muvuca de "Mona Lisa"


As filas reservadas para deficientes servem para igualar as oportunidades entre as pessoas

JÁ TINHAM me avisado que o salão onde repousa a mais famosa obra de Leonardo da Vinci, a "Mona Lisa", no Museu do Louvre, em Paris, era mais disputado que ingresso para show do Cauby Peixoto com a Angela Maria, mas, mesmo assim, fiquei surpreso quando botei minhas rodas na porta do local. Era gente demais para quadro de menos.
Cadeirantes costumam ser avessos a muvucas. Normalmente, em grandes aglomerações de pessoas, corro o risco de alguém cair sentado em meu colo e eu perder minha inocência. Isso sem falar no fato de que quase não vejo nada à minha frente, além de bundas dos mais variados tipos e tamanhos. Contudo, não poderia deixar de tentar me aproximar daquele sorrisinho dissimulado estando eu na capital francesa.
Minha namorada foi na frente, tentado abrir caminho na multidão aflita para tirar um retrato de "La Gioconda". Eu fui um pouco atrás, procurando evitar o inevitável: dar um totó em várias canelas com o pedal da cadeira de rodas. Quando já estávamos bem pertinho da glória, digo, da "Mona", o que mais temia aconteceu: um grupo de brasileiros surge resistente a abrir espaço.
O mais intrigante é que os meus compatriotas nem estavam preocupados em ver os detalhes da obra, eles queriam mesmo era tirar fotografias com a tela ao fundo, o que não deixa de ser legítimo, é claro.
"Benhê, tenta pegar o meu rosto ao lado do rosto dela. Nããão, assim eu não apareço direito! Tira outra e vê se não treme a mão", ordenava ao marido uma moça de cabelos negros, longos, mas com menos discrição que a modelo italiana. "Espera só um pouquinho, que deixo você passar, tá, menino?", disse em bom português minha conterrânea, enquanto sorria de olho na máquina fotográfica e na performance do "retratista" amador.
Quando fui visto pelos seguranças do museu no meio daquela confusão, imediatamente o caminho foi aberto. Desfizeram o cordão de isolamento e me puxaram para ficar bem no gargarejo da tela mundialmente reconhecida. "Você também vem para cá", recomendou o guarda a minha namorada.
De repente, estamos longe do empurra-empurra e diante daquele balaio de sensações e impressões que envolvem a pintura. Atrás de nós, uma multidão se espremendo para um melhor ângulo de visão. Para mim, estava promovida, naquele momento, a igualdade de oportunidade. Jamais poderia ter apreciado "Mona Lisa" sem aquela prioridade ou "privilégio".
As filas reservadas para deficientes, muitas vezes, servem para igualar as oportunidades entre as pessoas ou mesmo para garantir a segurança de todos. Uma pessoa que usa muletas, por exemplo, tem menos equilíbrio e pode se esborrachar no chão se levar um sacode durante a espera.
O direito à prioridade não é para dar vantagem. É para tentar diminuir a desvantagem. Uso dele sempre com parcimônia para não ser tachado de folgadão, mas há momentos em que abrir mão desse direito é como ter de resistir ao sorriso de "Mona Lisa".
Saiba mais sobre acessibilidade em Paris e veja a muvuca de "Mona Lisa", no blog. Sugestões: jairo.marques@grupofolha.com.br.

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