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DROGAS
Para Giovanni Quaglia, "motor" do narcotráfico é a facilidade de poder pagar o transporte com a própria mercadoria
Crime organizado funciona como holding, diz estudioso
ANDRÉA MICHAEL
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Giovanni Quaglia, 52, conhece
detalhes da história do Brasil nos
últimos cinco anos, período em
que o país ganhou status de consumidor no mercado mundial de
drogas. Até então, segundo Quaglia, o mapa era pontuado como
rota de comércio da mercadoria.
Responsável pelo Escritório das
Nações Unidas contra Drogas e
Crime no Brasil (UNODC) e Cone
Sul, esse engenheiro italiano coleciona números alarmantes: entre
1987-97, alunos do ensino médio
e fundamental passaram a consumir seis vezes ou mais ansiolíticos, anfetaminas, maconha e cocaína -700% a mais essa última.
Segundo Quaglia, que há 23
anos estuda o assunto e já comandou o UNODC na Bolívia, Paquistão e Viena, o grande motor do
narcotráfico no país é a facilidade
de poder pagar a cadeia de transporte com a própria droga.
Em entrevista à Folha, Quaglia
explicou que o crime organizado
funciona como uma holding, na
qual a droga é o item mais lucrativo de um negócio que gira US$ 1
trilhão por ano.
Folha - Quais os segmentos mais
lucrativos do crime organizado?
Giovanni Quaglia - O primeiro é
o das drogas, sobretudo cocaína,
heroína e as sintéticas, como ecstasy e anfetaminas. Estima-se que
esse negócio movimenta de US$
300 bilhões a US$ 500 bilhões. O
segundo é o tráfico de armas. Na
sequência, o tráfico de seres humanos para fins de prostituição,
comércio de órgãos, trabalho escravo. Depois, há outros setores,
como a corrupção e a lavagem de
dinheiro, que permeiam todo o
trabalho do crime organizado.
Folha - Como esses segmentos interagem no Brasil?
Quaglia - Funcionam como uma
holding. O grupo que trata de
drogas frequentemente está vinculado a tráfico de armas, sobretudo porque é um negócio que
não envolve dinheiro, só mercadorias. Eu te dou 20 kg de cocaína
em troca de uma metralhadora.
Isso acontece na fronteira entre a
Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai, sobretudo com o produto
do roubo de carga, carros e caminhões. Muitas vezes não tem dinheiro no meio. Por isso o crime
organizado funciona mais como
holding do que como negócio setorializado. No caso da prostituição, frequentemente as pessoas
são usadas para distribuir droga a
seus clientes. É assim no mundo
inteiro. Quem de alguma forma
revolucionou tudo isso foi a máfia
russa, que começou a traficar de
tudo sistematicamente.
Folha - Qual o destino mais comum do dinheiro do crime?
Quaglia - Paraísos fiscais.
Folha - Em que operação?
Quaglia - Há vários tipos de paraísos fiscais. Tem os que nasceram para receber dinheiro de
quem queria sonegar impostos.
Também tem a questão da insegurança na época da inflação. Outros se abriram para receber dinheiro do narcotráfico. Há ilhas
que se financiam operando bancos. Não falta lugar para o crime
organizado pôr seu dinheiro.
Folha - Só perde quem está dormindo...
Quaglia - Ou se algum país quiser demonstrar à comunidade internacional que terá uma posição
mais dura, e aí divulga a notícia.
Folha - Qual a posição do Brasil na
rede mundial das drogas?
Quaglia - O Brasil está no percurso entre os produtores e os
países europeus de destinação final do produto. Mas já não é só
rota. Nos últimos cinco anos, o
consumo aumentou. Dados do
Cebride [Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas" mostram que, de 87 a 97, os
estudantes de ensino médio e fundamental passaram a consumir
seis vezes ou mais: anfetaminas
(150% a mais), maconha (325%),
cocaína (700%). Criou-se no Brasil um mercado interessante para
os traficantes, porque eles não
precisam pagar com dinheiro os
serviços que prestam aos seus colegas na Europa e nos EUA. Em
um carregamento de 100 kg de cocaína que entra no Brasil, os brasileiros despacham 80 kg para fora
e ficam com 20 para distribuir
aqui. A droga no Brasil é barata.
Folha - Por quê?
Quaglia - Porque está perto dos
produtores. E aqui o traficante faz
o preço dependendo do poder
aquisitivo do cliente. O Brasil é
parte de uma escala. Você pode
comprar 1 kg de cocaína na fronteira entre Brasil e Bolívia por US$
1.500, a um nível de pureza de
70%. Depois, vende esse quilo nas
favelas do Brasil entre US$ 5 mil e
US$ 7 mil, com o mesmo nível de
pureza. O mesmo produto -com
pureza entre 30% e 50%- chegará aos clientes da classe média alta
a US$ 20 mil/kg, US$ 20/grama. A
mesma cocaína, que vem da Colômbia, da Bolívia, passa pelo
Brasil e continua para Europa e
EUA, será vendida em grandes
quantidades por US$ 30 mil a US$
50 mil/kg, chegando ao consumidor final por algo entre US$ 100
mil e US$ 150 mil.
Folha - Qual o grau de organização das "holdings" no Brasil?
Quaglia - Estão em níveis caseiros. O Brasil tem escala pequena e
está começando. As máfias russa,
japonesa e colombiana têm 20, 30
anos de experiência e dominam o
mercado da distribuição.
Folha - Até a prisão de Leonardo
Mendonça, dizia-se que Fernandinho Beira-Mar comandava a droga
no Brasil. Isso é verdade?
Quaglia - A regra básica é não ser
conhecido. O criminoso que continua seu negócio é aquele que
não está nos jornais todo dia.
Quando está visado, ou na cadeia,
sua importância diminuirá porque ninguém mais confiará nele
porque chama a atenção. Beira-Mar é importante no Brasil. Mas
os verdadeiros chefões estão bem
protegidos. Na Colômbia, quando Pablo Escobar ficou conhecido, acabou na cadeia e foi morto.
Mas isso não representou a derrota das organizações criminosas.
Simplesmente mudaram de tática
e se tornaram menores e mais numerosas. O cartel foi pulverizado.
Folha - Quais as raízes do crime
organizado no Brasil?
Quaglia - Estão em políticas de
governo passados que não imaginaram que grupos criminosos pequenos poderiam se desenvolver
e se tornar importantes. Nas grandes cidades, em locais onde não
há a presença do poder público,
criaram-se situações em que há
um Estado formal e um não-formal. Havia um pacto entre o asfalto e as favelas, no qual um não
mexia com o outro. Só que isso
mudou. O traficante não precisa
mais da comunidade. Agora ele é
temido. A comunidade ajuda
porque tem medo. Não dá só para
fazer força-tarefa, entrar, comandar operação e sair, porque não
há apoio da população.
Folha - Mas a população cobra
ações de repressão.
Quaglia - A repressão é como o
trabalho do bombeiro: apaga o fogo, serve para dar uma satisfação
momentânea de que o Estado faz
alguma coisa, mas sozinha não resolve. Também é errado esperar
que o problema seja resolvido só
pela polícia. Existe o traficante
porque há uma demanda pelos
produtos que ele vende. Se por
um lado a sociedade pode exigir
uma melhor eficiência na repressão, também tem que colaborar
para reduzir o mercado do traficante. O negócio só é bom se tem
cliente. O mesmo acontece em
outros crimes: compra de carro
roubado, de CDs falsificados... As
pessoas compram, mas não pensam que isso alimenta a economia
informal e o crime organizado. Se
quisermos ter mais sucesso nas
ações contra as organizações criminosas, temos que focalizar a
atenção em como reduzir o mercado financeiro do traficante.
Folha - Como se muda isso?
Quaglia - Com trabalho preventivo, que tem relação custo-benefício muito mais positiva do que
ações repressivas. Nós [Escritório
das Nações Unidas Contra Drogas e Crime" estamos trabalhando
com a Senad [Secretaria Nacional
Antidrogas", o Ministério da Saúde, da Educação, dos Esportes e
das Cidades. Resultados só com
ações integradas.
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