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São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003

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DROGAS

Para Giovanni Quaglia, "motor" do narcotráfico é a facilidade de poder pagar o transporte com a própria mercadoria

Crime organizado funciona como holding, diz estudioso

ANDRÉA MICHAEL
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Giovanni Quaglia, 52, conhece detalhes da história do Brasil nos últimos cinco anos, período em que o país ganhou status de consumidor no mercado mundial de drogas. Até então, segundo Quaglia, o mapa era pontuado como rota de comércio da mercadoria.
Responsável pelo Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime no Brasil (UNODC) e Cone Sul, esse engenheiro italiano coleciona números alarmantes: entre 1987-97, alunos do ensino médio e fundamental passaram a consumir seis vezes ou mais ansiolíticos, anfetaminas, maconha e cocaína -700% a mais essa última.
Segundo Quaglia, que há 23 anos estuda o assunto e já comandou o UNODC na Bolívia, Paquistão e Viena, o grande motor do narcotráfico no país é a facilidade de poder pagar a cadeia de transporte com a própria droga.
Em entrevista à Folha, Quaglia explicou que o crime organizado funciona como uma holding, na qual a droga é o item mais lucrativo de um negócio que gira US$ 1 trilhão por ano.

Folha - Quais os segmentos mais lucrativos do crime organizado?
Giovanni Quaglia -
O primeiro é o das drogas, sobretudo cocaína, heroína e as sintéticas, como ecstasy e anfetaminas. Estima-se que esse negócio movimenta de US$ 300 bilhões a US$ 500 bilhões. O segundo é o tráfico de armas. Na sequência, o tráfico de seres humanos para fins de prostituição, comércio de órgãos, trabalho escravo. Depois, há outros setores, como a corrupção e a lavagem de dinheiro, que permeiam todo o trabalho do crime organizado.

Folha - Como esses segmentos interagem no Brasil?
Quaglia -
Funcionam como uma holding. O grupo que trata de drogas frequentemente está vinculado a tráfico de armas, sobretudo porque é um negócio que não envolve dinheiro, só mercadorias. Eu te dou 20 kg de cocaína em troca de uma metralhadora. Isso acontece na fronteira entre a Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai, sobretudo com o produto do roubo de carga, carros e caminhões. Muitas vezes não tem dinheiro no meio. Por isso o crime organizado funciona mais como holding do que como negócio setorializado. No caso da prostituição, frequentemente as pessoas são usadas para distribuir droga a seus clientes. É assim no mundo inteiro. Quem de alguma forma revolucionou tudo isso foi a máfia russa, que começou a traficar de tudo sistematicamente.

Folha - Qual o destino mais comum do dinheiro do crime?
Quaglia -
Paraísos fiscais.

Folha - Em que operação?
Quaglia -
Há vários tipos de paraísos fiscais. Tem os que nasceram para receber dinheiro de quem queria sonegar impostos. Também tem a questão da insegurança na época da inflação. Outros se abriram para receber dinheiro do narcotráfico. Há ilhas que se financiam operando bancos. Não falta lugar para o crime organizado pôr seu dinheiro.

Folha - Só perde quem está dormindo...
Quaglia -
Ou se algum país quiser demonstrar à comunidade internacional que terá uma posição mais dura, e aí divulga a notícia.

Folha - Qual a posição do Brasil na rede mundial das drogas?
Quaglia -
O Brasil está no percurso entre os produtores e os países europeus de destinação final do produto. Mas já não é só rota. Nos últimos cinco anos, o consumo aumentou. Dados do Cebride [Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas" mostram que, de 87 a 97, os estudantes de ensino médio e fundamental passaram a consumir seis vezes ou mais: anfetaminas (150% a mais), maconha (325%), cocaína (700%). Criou-se no Brasil um mercado interessante para os traficantes, porque eles não precisam pagar com dinheiro os serviços que prestam aos seus colegas na Europa e nos EUA. Em um carregamento de 100 kg de cocaína que entra no Brasil, os brasileiros despacham 80 kg para fora e ficam com 20 para distribuir aqui. A droga no Brasil é barata.

Folha - Por quê?
Quaglia -
Porque está perto dos produtores. E aqui o traficante faz o preço dependendo do poder aquisitivo do cliente. O Brasil é parte de uma escala. Você pode comprar 1 kg de cocaína na fronteira entre Brasil e Bolívia por US$ 1.500, a um nível de pureza de 70%. Depois, vende esse quilo nas favelas do Brasil entre US$ 5 mil e US$ 7 mil, com o mesmo nível de pureza. O mesmo produto -com pureza entre 30% e 50%- chegará aos clientes da classe média alta a US$ 20 mil/kg, US$ 20/grama. A mesma cocaína, que vem da Colômbia, da Bolívia, passa pelo Brasil e continua para Europa e EUA, será vendida em grandes quantidades por US$ 30 mil a US$ 50 mil/kg, chegando ao consumidor final por algo entre US$ 100 mil e US$ 150 mil.

Folha - Qual o grau de organização das "holdings" no Brasil?
Quaglia -
Estão em níveis caseiros. O Brasil tem escala pequena e está começando. As máfias russa, japonesa e colombiana têm 20, 30 anos de experiência e dominam o mercado da distribuição.

Folha - Até a prisão de Leonardo Mendonça, dizia-se que Fernandinho Beira-Mar comandava a droga no Brasil. Isso é verdade?
Quaglia -
A regra básica é não ser conhecido. O criminoso que continua seu negócio é aquele que não está nos jornais todo dia. Quando está visado, ou na cadeia, sua importância diminuirá porque ninguém mais confiará nele porque chama a atenção. Beira-Mar é importante no Brasil. Mas os verdadeiros chefões estão bem protegidos. Na Colômbia, quando Pablo Escobar ficou conhecido, acabou na cadeia e foi morto. Mas isso não representou a derrota das organizações criminosas. Simplesmente mudaram de tática e se tornaram menores e mais numerosas. O cartel foi pulverizado.

Folha - Quais as raízes do crime organizado no Brasil?
Quaglia -
Estão em políticas de governo passados que não imaginaram que grupos criminosos pequenos poderiam se desenvolver e se tornar importantes. Nas grandes cidades, em locais onde não há a presença do poder público, criaram-se situações em que há um Estado formal e um não-formal. Havia um pacto entre o asfalto e as favelas, no qual um não mexia com o outro. Só que isso mudou. O traficante não precisa mais da comunidade. Agora ele é temido. A comunidade ajuda porque tem medo. Não dá só para fazer força-tarefa, entrar, comandar operação e sair, porque não há apoio da população.

Folha - Mas a população cobra ações de repressão.
Quaglia -
A repressão é como o trabalho do bombeiro: apaga o fogo, serve para dar uma satisfação momentânea de que o Estado faz alguma coisa, mas sozinha não resolve. Também é errado esperar que o problema seja resolvido só pela polícia. Existe o traficante porque há uma demanda pelos produtos que ele vende. Se por um lado a sociedade pode exigir uma melhor eficiência na repressão, também tem que colaborar para reduzir o mercado do traficante. O negócio só é bom se tem cliente. O mesmo acontece em outros crimes: compra de carro roubado, de CDs falsificados... As pessoas compram, mas não pensam que isso alimenta a economia informal e o crime organizado. Se quisermos ter mais sucesso nas ações contra as organizações criminosas, temos que focalizar a atenção em como reduzir o mercado financeiro do traficante.

Folha - Como se muda isso?
Quaglia -
Com trabalho preventivo, que tem relação custo-benefício muito mais positiva do que ações repressivas. Nós [Escritório das Nações Unidas Contra Drogas e Crime" estamos trabalhando com a Senad [Secretaria Nacional Antidrogas", o Ministério da Saúde, da Educação, dos Esportes e das Cidades. Resultados só com ações integradas.


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