São Paulo, domingo, 04 de maio de 2008

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Agência oferece papo com traficante em tour por favela

Passeio turístico pela Rocinha, no Rio, inclui conversa com "soldado" armado

"Vamos lá que vou te apresentar", diz guia durante a visita; secretário nacional de Segurança Pública vê "apologia ao crime"

Vinícius Queiroz Galvão/Folha Imagem
"Soldado do tráfico' armado com submetralhadora vigia área
da favela da Rocinha; passeio, de R$ 90, dura cerca de quatro horas


VINÍCIUS QUEIROZ GALVÃO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Muito além daqueles jipes que promovem passeios à moda de safáris na favela da Rocinha, a maior da zona sul do Rio, uma agência de turismo oferece agora uma outra modalidade de pacote, incluindo bate-papo com traficantes armados.
Incógnita, disfarçada de turista estrangeiro, a Folha fez o percurso promovido pelo guia Pedro Novak, da Private Tours, que consta do catálogo oficial da Riotur, a empresa de turismo da prefeitura carioca.
"Vamos caminhar dentro da favela, dar de cara com eles, com os "soldados", o pessoal armado que protege a área lá em cima. Dá para conversar, me conhecem", diz Novak ao explicar, por telefone, o roteiro.
Ao chegar à Rocinha, o primeiro sinal do tráfico é a presença de olheiros, que fazem a vigilância em cima de lajes -morteiros à mão, para emitir o alerta da presença policial.
No início da incursão pelos becos da favela, o guia diz ter encontrado um traficante. "Vamos lá que vou te apresentar."
É Marcos, que se diz "soldado do tráfico" e conta que já passou nove anos e oito meses na prisão. "Diversas vezes estive na cadeia. Ao todo foram três fugas e oito tentativas."
Para ele, a principal preocupação "é a polícia" e os "inimigos", a facção rival Comando Vermelho. Hoje, a ADA (Amigo dos Amigos) tem o controle da venda de drogas na Rocinha, onde Marcos, de arma na cintura, afirma ter aprendido a manejar "diversos calibres". Ao final da conversa, deixa um número de celular com o guia.
Mais acima no morro, um homem sentado tem visão privilegiada de quem sobe. Submetralhadora prateada na mão, rádio walkie-talkie pendurado no pescoço, conta que trabalha em turnos de 12 horas, com folga de 24 horas, ganha R$ 300 por semana, "pagos todas as segundas-feiras", e recebe cesta básica e remédios.
O secretário nacional de Segurança Pública, Ricardo Balestreri, diz ver no caso "apologia ao crime" e ""glamourização" da atividade criminosa".
Às 19h, na base do morro da Rocinha, numa das partes mais movimentadas da favela, a via Ápia, garotos que aparentam não ter mais de 15 anos fumam cigarros de maconha maiores que os próprios dedos. São os "aviõezinhos" do tráfico. Ali mesmo vendem papelotes, embrulhinhos de cocaína ou de outras drogas quaisquer.
O esquema funciona no sistema "drive-thru": os motoristas passam de carro, abaixam o vidro -como se houvessem previamente combinado-, recebem a encomenda e entregam o dinheiro.
Não há diálogo, e a ação, que não dura mais do que alguns segundos, é mecânica.

Boca-de-fumo
O passeio pela boca-de-fumo faz parte do pacote turístico, que custa R$ 90 e dura quatro horas. "É onde os playboys compram drogas", diz o guia.
No alto do morro, mais cedo, o agente de turismo mostra marcas de balas nas paredes dos barracos e nos telhados de zinco que cobrem parte dos becos, resultado não só de tiroteios com a polícia, mas de treinamento paramilitar dos próprios traficantes, segundo explica um "soldado" que empunhava uma submetralhadora e fazia a vigilância de uma das passagens da rua 1.
Curiosamente, ao fim da conversa, o "soldado" se deixa fotografar pela reportagem (disfarçada). Pede para o ver o resultado na câmera digital para garantir que o rosto não aparecesse nas imagens.
Mais à frente, o guia mostra uma pichação em que se lê "ADA" -sigla da facção que comanda o tráfico na Rocinha, onde, segundo o Censo 2000, moram aproximadamente 56 mil pessoas.
"Tem gente que vai nisso com risco de vida? Veja a sensação da impunidade como anda. É um território dentro do Estado", diz o juiz aposentado e criminalista Luiz Flávio Gomes.


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