São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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DANUZA LEÃO

Um casal


Duas pessoas que vivem juntas há mais de meio século e que continuam tão interessadas uma pela outra

ELES SEMPRE foram um casal muito legal. Casados -e bem- há mais de 50 anos, inteligentes, cultos, amigos dos seus amigos, sempre do lado certo, politicamente, e profundamente, interessados na vida do país. Passaram uns dois anos fora do Brasil, na época da brabeira, e na volta abriram uma livraria, hoje administrada pelos filhos. Morando em São Paulo, de vez em quando vêm ao Rio e aproveitam para rever os velhos amigos.
São ambos afáveis, mais do que a maioria das pessoas costuma ser, e ela é das mulheres mais doces que existem -além de bonita e elegante. Sua fala é mansa, seu olhar, carinhoso, e é sempre um enorme prazer encontrar os dois, pessoas verdadeiramente raras.
Bem, aos fatos: no Rio existe um restaurante especializado em feijoadas; de segunda a segunda, almoço e jantar, a feijoada é o prato principal da casa.
Feijoada é uma comida alegre, que normalmente é pretexto para encontro de amigos, em mesas enormes. O dia de comer feijoada costuma ser sábado, pois como o prato é pesado, ainda se tem o domingo inteiro para esquecer das caipirinhas, da carne seca, do paio, da língua defumada, do torresmo, de todos os exageros, enfim, cometidos em volta da mesa. Mas existem alguns insensatos que cometem loucuras também às segundas-feiras, o que aconteceu na última semana. Eu era um deles, e fui a primeira a chegar.
O restaurante estava vazio, com exceção de uma mesa: nela estava o casal de que falei acima. Eram só os dois, tomando uma vodca e conversando. Sentei uns minutos com eles, e quando meus amigos chegaram, demos um tchau, combinamos de nos ver em breve, e fui comer a feijoada (dos deuses) com minha turma -bem barulhenta, por sinal. Eles comeram a deles, tranqüilamente, terminaram antes de nós, vieram se despedir e foram embora.
Teoricamente, uma cena banal, só que não foi. Para mim, foi uma cena de filme.
Eu havia sabido que ele, o marido, andava enfrentando problemas de saúde, e vi que ele saiu se apoiando em uma bengala. E pensei que se já é difícil ver um casal num restaurante (a não ser nos primeiríssimos tempos da paquera), sem amigos para animar o papo, mais difícil ainda é ver um casal casado há tanto tempo sair de casa -os dois, só os dois-, para almoçar fora numa segunda-feira. Um casal abençoado, eu diria.
Eles não pararam de conversar um só instante, e me emocionei com a visão de duas pessoas que vivem juntas há mais de meio século e que continuam tão companheiras, tão interessadas uma pela outra, tão gentis uma com a outra, tão dispostas a sair de casa, numa segunda-feira, para terem o prazer de comer uma feijoada, um com o outro. Quanto amor pela vida. Quanto amor um pelo outro. Que coisa linda.
E continuei pensando: pensando nos casais que não dão certo, nas pessoas que passam a vida procurando pela felicidade e se perdendo nessa busca, e me perguntei o que faz com que alguns poucos consigam chegar lá.
Será um dom? Uma vocação? Um aprendizado? Um equilíbrio? Há quem diga que é uma questão de DNA, que há os que nasceram para ser felizes e os outros (aliás a maioria), que teoricamente têm tudo para ser, mas não são.
Essa história pode parecer banal, mas sabe que não é?


@ - danuza.leao uol.com.br


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