São Paulo, segunda-feira, 04 de junho de 2007

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ENTREVISTA/CARMEN BARROSO

"Aborto não pode ser sentença de morte"

Diretora de Federação Internacional de Planejamento Familiar defende a "redução de danos" para mortalidade por aborto cair

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

Os modos delicados e a voz sempre em volume baixo da diretora para o hemisfério ocidental da Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF, na sigla em inglês), Carmen Barroso, contrastam com o tamanho da encrenca em que ela se meteu na semana que passou. Radicada há 17 anos nos Estados Unidos, a ex-professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e feminista das mais respeitadas, veio ao Brasil para divulgar o relatório "Morte e Negação: Abortamento Inseguro e Pobreza".
Aproveitou e defendeu uma estratégia ousada para reduzir a mortalidade materna decorrente de abortamentos malfeitos: a da redução de danos, "nos moldes da que é feita quando se distribui seringas descartáveis para usuários de drogas injetáveis, visando a redução do contágio pelo vírus HIV".
Na prática, significa oferecer informações para as mulheres que querem abortar -sobre a possibilidade de levar a gravidez até o fim e entregar o filho em adoção, sobre os riscos do aborto, e até, sobre como tomar o Citotec, droga usada para interrupção de gestação.
A entidade BemFam (Bem-Estar Familiar) filiada à IPPF, anunciou que pretende iniciar o programa de redução de danos, a partir de setembro, em hospitais públicos de Campinas. O Ministério Público já investiga se isso não caracterizaria "incitação ao crime", posto que o aborto no Brasil só é permitido em casos de estupro e de risco de morte para a mãe.  

FOLHA - Como a senhora avalia o pacote sobre planejamento familiar anunciado pelo governo?
CARMEN BARROSO
- É bom e oportuno, mas incompleto. Ajuda a combater a mortalidade materna, uma vergonha nacional. Para se ter uma idéia, o Brasil tem índices de mortalidade materna comparáveis aos da Guatemala, país com nível de desenvolvimento muito menor. O planejamento familiar contribui para reduzir a gravidez indesejável e, com isso, reduz a incidência de aborto mal feito, uma das principais causas da mortalidade materna.

FOLHA - E por que é incompleto?
BARROSO
- É incompleto porque não inclui contracepção de emergência [refere-se à pílula do dia seguinte], o que eu considero uma falha gravíssima. A outra coisa é que o pacote não trata do aborto inseguro.

FOLHA - Como assim? O Lula não pode mudar a lei por intermédio de um pacote, não é?
BARROSO
- Não. Mas pode adotar medidas de redução de danos, como as do Uruguai. A lei não mudou, mas a mortalidade diminuiu porque o Ministério da Saúde local adotou as chamadas "iniciativas sanitárias".

FOLHA - O que é isso?
BARROSO
- Quando uma mulher está grávida e não quer levar a gravidez adiante, ela vai ao hospital e recebe um atendimento que, primeiramente, avalia se há mesmo uma gravidez. Depois, verifica se a gravidez está em estado avançado. A partir desse ponto, a mulher recebe informações sobre os riscos da interrupção, sobre a possibilidade de levar a gestação adiante e entregar o filho para adoção, sobre como tomar o Citotec, droga usada para o aborto medicamentoso. O hospital não lhe dá o Citotec, que ela terá de encontrar por conta própria, porque, por enquanto, no Uruguai o aborto não é legalizado, à exceção de uns poucos casos, como no Brasil. O médico informa qual a dosagem certa, como ela deve fazer, orienta-a de que, diante de qualquer complicação, ela deve ir ao hospital imediatamente. Com isso, eles praticamente acabaram com a mortalidade materna no Uruguai.

FOLHA - E sem mudar a legislação?
BARROSO
- Sim. É uma estratégia de redução de danos -a mesma lógica que se usa quando se distribuem seringas descartáveis para usuários de drogas injetáveis, visando à redução do contágio pelo vírus HIV. A idéia é dar um tratamento médico ao problema. Se a mulher está decidida a fazer o aborto, que ela não morra em decorrência.

FOLHA - Mas isso não pode ser confundido com incitação ao crime?
BARROSO
- A beleza da experiência do Uruguai é que se dirige a um consenso. Todo mundo gostaria que houvesse menos abortos inseguros. A idéia é oferecer às mulheres um aconselhamento em casos de gravidez indesejada, que lhe permita evitar o aborto inseguro -seja dando a criança em adoção, seja decidindo manter a gravidez, seja optando por fazer um aborto pelo método menos danoso. O que se defende é a saúde das mulheres, ao mesmo tempo que se garante o direito à informação e se dá instrumentos para uma tomada de decisão consciente.

FOLHA - O que a senhora acha da idéia de plebiscito sobre o aborto?
BARROSO
- O plebiscito é bom porque educa a população. A grande maioria está ainda submetida unicamente à doutrinação de que o aborto é pecado, é crime, e não pôde submeter essa idéia a uma revisão crítica. É possível que, em um primeiro momento, um plebiscito não resulte na legalização do aborto, mas -é observar o que ocorreu em Portugal-, sete anos depois, outro plebiscito pode aprová-la. Recentemente, a Cidade do México também legalizou o aborto. O Brasil demorou 60 anos a mais do que o México para acabar com a escravidão dos negros. Espero que não demore esse tempo todo a mais para libertar as brasileiras.

FOLHA - A BemFam era uma entidade demonizada pelas feministas. O que mudou?
BARROSO
- No fim dos anos 1970, predominava na esquerda brasileira não só uma atitude negativa em relação ao planejamento familiar mas até uma atitude natalista. Esquerda e direita, neste ponto, convergiam. A idéia era "vamos ocupar a Amazônia, para evitar que o imperialismo invada" ou "planejamento familiar é controlar guerrilheiros matando-os no útero". Havia muitos equívocos nas nossas posições da época. A BemFam também mudou muito.

FOLHA - Está mais difícil defender o direito ao aborto, agora que a ciência mantém vivos prematuros com idade gestacional cada vez menor?
BARROSO
- Acho que a vida em potencial, que é esta que começa no útero, deve ser respeitada. As feministas reconhecem isso. Não são a favor do aborto por questões levianas. Tanto é que consideram, por exemplo, que fazer o aborto para ter um filho e não uma filha, por exemplo, não é certo.

FOLHA - E a mulher que aborta porque o feto tem alguma deficiência?
BARROSO
- Não é verdade que todas as deficiências sejam iguais -algumas são verdadeiramente incapacitantes. Fazer a seleção de modo a buscar um filho ideal é muito perigoso. Pode levar a uma sociedade que não tolera a deficiência. Agora, há deficiências graves, que colocam a família em uma situação insustentável, a começar da anencefalia. Nesse caso, é defensável a decisão de aborto.

FOLHA - O que acha de limitar um prazo máxima para o aborto?
BARROSO
- O importante é legalizar, para que as pessoas possam decidir o quanto antes.


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