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ENTREVISTA/CARMEN BARROSO
"Aborto não pode ser sentença de morte"
Diretora de Federação Internacional de Planejamento Familiar defende a "redução de danos" para mortalidade por aborto cair
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
Os modos delicados e a voz sempre em volume
baixo da diretora para o hemisfério ocidental da
Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF, na sigla em inglês), Carmen Barroso, contrastam com o tamanho da encrenca em
que ela se meteu na semana que passou. Radicada há 17 anos nos Estados Unidos, a ex-professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP e feminista das mais respeitadas, veio ao Brasil para divulgar o relatório "Morte e Negação: Abortamento Inseguro e Pobreza".
Aproveitou e defendeu uma estratégia ousada
para reduzir a mortalidade materna decorrente
de abortamentos malfeitos: a
da redução de danos, "nos moldes da que é feita quando se distribui seringas descartáveis para usuários de drogas injetáveis, visando a redução do contágio pelo vírus HIV".
Na prática, significa oferecer
informações para as mulheres
que querem abortar -sobre a
possibilidade de levar a gravidez até o fim e entregar o filho
em adoção, sobre os riscos do
aborto, e até, sobre como tomar
o Citotec, droga usada para interrupção de gestação.
A entidade BemFam (Bem-Estar Familiar) filiada à IPPF,
anunciou que pretende iniciar
o programa de redução de danos, a partir de setembro, em
hospitais públicos de Campinas. O Ministério Público já investiga se isso não caracterizaria "incitação ao crime", posto
que o aborto no Brasil só é permitido em casos de estupro e de
risco de morte para a mãe.
FOLHA - Como a senhora avalia o
pacote sobre planejamento familiar
anunciado pelo governo?
CARMEN BARROSO - É bom e
oportuno, mas incompleto.
Ajuda a combater a mortalidade materna, uma vergonha nacional. Para se ter uma idéia, o
Brasil tem índices de mortalidade materna comparáveis aos
da Guatemala, país com nível
de desenvolvimento muito menor. O planejamento familiar
contribui para reduzir a gravidez indesejável e, com isso, reduz a incidência de aborto mal
feito, uma das principais causas
da mortalidade materna.
FOLHA - E por que é incompleto?
BARROSO - É incompleto porque não inclui contracepção de
emergência [refere-se à pílula
do dia seguinte], o que eu considero uma falha gravíssima. A
outra coisa é que o pacote não
trata do aborto inseguro.
FOLHA - Como assim? O Lula não
pode mudar a lei por intermédio de
um pacote, não é?
BARROSO - Não. Mas pode adotar medidas de redução de danos, como as do Uruguai. A lei
não mudou, mas a mortalidade
diminuiu porque o Ministério
da Saúde local adotou as chamadas "iniciativas sanitárias".
FOLHA - O que é isso?
BARROSO - Quando uma mulher está grávida e não quer levar a gravidez adiante, ela vai ao
hospital e recebe um atendimento que, primeiramente,
avalia se há mesmo uma gravidez. Depois, verifica se a gravidez está em estado avançado. A
partir desse ponto, a mulher recebe informações sobre os riscos da interrupção, sobre a possibilidade de levar a gestação
adiante e entregar o filho para
adoção, sobre como tomar o Citotec, droga usada para o aborto medicamentoso.
O hospital não lhe dá o Citotec, que ela terá de encontrar
por conta própria, porque, por
enquanto, no Uruguai o aborto
não é legalizado, à exceção de
uns poucos casos, como no Brasil. O médico informa qual a dosagem certa, como ela deve fazer, orienta-a de que, diante de
qualquer complicação, ela deve
ir ao hospital imediatamente.
Com isso, eles praticamente
acabaram com a mortalidade
materna no Uruguai.
FOLHA - E sem mudar a legislação?
BARROSO - Sim. É uma estratégia de redução de danos -a
mesma lógica que se usa quando se distribuem seringas descartáveis para usuários de drogas injetáveis, visando à redução do contágio pelo vírus HIV.
A idéia é dar um tratamento
médico ao problema. Se a mulher está decidida a fazer o
aborto, que ela não morra em
decorrência.
FOLHA - Mas isso não pode ser confundido com incitação ao crime?
BARROSO - A beleza da experiência do Uruguai é que se dirige a um consenso. Todo mundo
gostaria que houvesse menos
abortos inseguros. A idéia é oferecer às mulheres um aconselhamento em casos de gravidez
indesejada, que lhe permita
evitar o aborto inseguro -seja
dando a criança em adoção, seja
decidindo manter a gravidez,
seja optando por fazer um
aborto pelo método menos danoso. O que se defende é a saúde das mulheres, ao mesmo
tempo que se garante o direito
à informação e se dá instrumentos para uma tomada de
decisão consciente.
FOLHA - O que a senhora acha da
idéia de plebiscito sobre o aborto?
BARROSO - O plebiscito é bom
porque educa a população. A
grande maioria está ainda submetida unicamente à doutrinação de que o aborto é pecado, é
crime, e não pôde submeter essa idéia a uma revisão crítica. É
possível que, em um primeiro
momento, um plebiscito não
resulte na legalização do aborto, mas -é observar o que ocorreu em Portugal-, sete anos
depois, outro plebiscito pode
aprová-la. Recentemente, a Cidade do México também legalizou o aborto. O Brasil demorou
60 anos a mais do que o México
para acabar com a escravidão
dos negros. Espero que não demore esse tempo todo a mais
para libertar as brasileiras.
FOLHA - A BemFam era uma entidade demonizada pelas feministas.
O que mudou?
BARROSO - No fim dos anos
1970, predominava na esquerda brasileira não só uma atitude negativa em relação ao planejamento familiar mas até uma atitude natalista. Esquerda e direita, neste ponto, convergiam. A idéia era "vamos
ocupar a Amazônia, para evitar
que o imperialismo invada" ou
"planejamento familiar é controlar guerrilheiros matando-os no útero". Havia muitos
equívocos nas nossas posições
da época. A BemFam também
mudou muito.
FOLHA - Está mais difícil defender o
direito ao aborto, agora que a ciência mantém vivos prematuros com
idade gestacional cada vez menor?
BARROSO - Acho que a vida em
potencial, que é esta que começa no útero, deve ser respeitada. As feministas reconhecem
isso. Não são a favor do aborto
por questões levianas. Tanto é
que consideram, por exemplo,
que fazer o aborto para ter um
filho e não uma filha, por exemplo, não é certo.
FOLHA - E a mulher que aborta porque o feto tem alguma deficiência?
BARROSO - Não é verdade que
todas as deficiências sejam
iguais -algumas são verdadeiramente incapacitantes. Fazer
a seleção de modo a buscar um
filho ideal é muito perigoso. Pode levar a uma sociedade que
não tolera a deficiência. Agora,
há deficiências graves, que colocam a família em uma situação insustentável, a começar da
anencefalia. Nesse caso, é defensável a decisão de aborto.
FOLHA - O que acha de limitar um
prazo máxima para o aborto?
BARROSO - O importante é legalizar, para que as pessoas possam decidir o quanto antes.
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