São Paulo, domingo, 04 de julho de 2004

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DANUZA LEÃO

Pingos nos "is"

Quando a gente se dá conta de que se explicou mal, deve procurar se explicar melhor; e se, sem querer, ofendeu, deve dizer que a intenção não era essa. É o que vou fazer agora.
Por mais globalizado que o mundo esteja, algumas coisas são regionais, outras, nacionais, outras, universais. A razão? Vai saber.
A bossa nova, por exemplo, nasceu universal, por isso foi logo consagrada de Tóquio ao México, passando pela Patagônia e pela Oceania; já se num elevador de Nova York tocar um fado, os americanos não vão entender. A bossa nova é linda, o fado é lindo, mas algumas manifestações populares são tão enraizadas que o mais certo seria conhecê-las no seu habitat. Tem melhor do que ouvir um grupo de mariachis tocando e cantando numa pequena cidade do México? Tomando uma tequila, de preferência?
Existem coisas, pessoas, modas, comidas, músicas, folclores, vinhos, que viajam mal, e é preciso ter sensibilidade para entender que o segredo de tudo está no saber harmonizar.
Das maiores felicidades que existem é chegar a Salvador e pedir ao motorista do táxi para, no caminho do hotel, parar numa barraca de baiana.
Eles conhecem todas pelo nome, e sentar num banquinho tosco para comer um acarajé num papel cor-de-rosa de embrulho, tomando uma cerveja, é das melhores coisas da vida. Depois disso, já dá até para pegar o avião de volta.
Mas experimente fazer isso em São Paulo: não tem nada a ver. O dendê não combina com a cidade, as mãos lambuzadas não combinam com a maneira como se vestem as paulistas, a temperatura da cidade atrapalha (e se estiver fazendo calor, não muda nada). Acarajé é em Salvador, se possível sentindo o cheiro do mar de Itapoã.
Não há espetáculo mais empolgante do que um desfile de escola de samba; os cariocas entram na fila para comprar os ingressos 48 horas antes de a bilheteria abrir, e mesmo debaixo de chuva ninguém se move até o último sambista acabar de desfilar -e isso, durante duas noites seguidas. Não há quem não se entusiasme, não se empolgue e não saia dizendo que assistiu a um dos mais lindos espetáculos da Terra.
Mas escola de samba também viaja mal, e tive a prova disso em duas ocasiões.
A primeira foi numa festança em Mônaco, a outra na Copa do Mundo de 98, em Paris, nos jardins das Tulherias, onde se exibiram algumas alas de escolas cariocas.
Foi um constrangimento. Por quê? Porque não combinava. Como não combinaria levar um grupo de escoceses para exibir suas gaitas de foles e seus kilts em Recife, como não combinaria um festival de música techno em Belém, como não combina um ministro com um dentinho pintado de carvão numa festa caipira que pode ser linda em Caruaru, mas não tem nada a ver com o mundo oficial, numa residência oficial, em Brasília; apenas uma questão de sensibilidade e estética. Você já viu alguma coisa mais descombinada do que o Halloween no Brasil?
É impossível explicar, e como o samba, não se aprende na escola: se entende ou não se entende a diferença entre as coisas universais e as regionais; nada a favor nem contra, apenas uma constatação. É como um namorado marroquino com quem você teve um romance em Marrakech. Foi lindo, mas não invente de trazê-lo para o Brasil porque não vai dar certo. Certas coisas -tanto quanto certas pessoas- são para serem apreciadas e admiradas no seu lugar de origem.
E para terminar, uma regra universal: presidentes da República e suas respectivas esposas não devem, jamais, se fantasiar.


E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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