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MOACYR SCLIAR
A luta do amor
Mulheres saem da defensiva contra
homens "abusados". Unhas e salto
alto são armas do passado. A mulher
usa técnicas de artes marciais e boxe
para se livrar de homens inconvenientes. Cotidiano, 27.jul.2003
Da janela do escritório, ele
sempre a observava: uma
moça alta, esguia e bela, muito
bela. Morava ali perto, aparentemente sozinha. Abordá-la era,
pois, uma tentação constante,
mas não seria coisa fácil. Não tinha tempo. Funcionário dedicado, ficava até tarde no escritório,
o que acabou favorecendo
o encontro.
Numa sexta-feira, trabalhou
quase até as dez horas. Quando
saiu, avistou-a: lá vinha ela, a
moça alta, esguia e bela, caminhando apressada pela rua escura, deserta. Vacilou um instante
(no fundo, era tímido), criou
coragem e dirigiu-se a ela,
chamando-a de gatinha ou algo
do gênero.
A reação da moça foi extraordinária. Parou, encarou-o firmemente: "O que foi que você disse?".
Desconcertado, ele perguntou,
já gaguejando, se podia acompanhá-la. E, antes que pudesse
acrescentar qualquer coisa, antes
que pudesse se apresentar, a surpresa: o pé dela veio como um
aríete contra o seu peito, derrubando-o. E aí foi uma saraivada
de golpes, de socos, de pontapés.
Depois da surra, a moça se afastou, tranquilamente, deixando-o
jogado sobre a calçada. Com
grande esforço, ele se levantou e,
cambaleando, tomou um táxi. O
motorista, alarmado, perguntou o
que tinha acontecido.
"Um assalto", disse ele. "Três caras enormes. Pediram o dinheiro,
eu não entreguei, eles bateram
pra valer."
No dia seguinte, cheio de hematomas, teve de repetir a explicação
para os colegas de trabalho. "Esquece", disse um deles, "isso faz
parte da vida."
Mas ele não esqueceria a humilhação pela qual tinha passado.
Aquilo exigia vingança. Não hesitou: matriculou-se num curso de
artes marciais e dedicou-se com
afinco ao treinamento. Em poucos meses, já recebia rasgados elogios dos professores. Estava pronto para a desforra.
Naquela mesma noite, ficou de
plantão na frente do prédio em
que morava a moça. Por volta das
onze, ela apareceu. Ele barrou-lhe
o passo: "temos de conversar", disse. Ela nem hesitou: de novo, veio
com tudo. E aí ele constatou que o
treino tinha sido insuficiente. De
novo, levou uma surra. Ela derrubou-o no solo, imobilizou-o. Os
dois cara a cara, ela o beijou.
Furiosamente.
Estão casados. Vivem muito
bem, tratam-se amavelmente.
Quando a relação ameaça ficar
morna, ele a desafia para uma
boa briga. Que sempre termina
com os dois fazendo amor. Furiosamente, como convém a praticantes de artes marciais.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras,
nesta coluna, um texto de ficção baseado
em matérias publicadas no jornal.
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