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São Paulo, segunda-feira, 04 de agosto de 2003

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MOACYR SCLIAR

A luta do amor

Mulheres saem da defensiva contra homens "abusados". Unhas e salto alto são armas do passado. A mulher usa técnicas de artes marciais e boxe para se livrar de homens inconvenientes. Cotidiano, 27.jul.2003

Da janela do escritório, ele sempre a observava: uma moça alta, esguia e bela, muito bela. Morava ali perto, aparentemente sozinha. Abordá-la era, pois, uma tentação constante, mas não seria coisa fácil. Não tinha tempo. Funcionário dedicado, ficava até tarde no escritório, o que acabou favorecendo o encontro.
Numa sexta-feira, trabalhou quase até as dez horas. Quando saiu, avistou-a: lá vinha ela, a moça alta, esguia e bela, caminhando apressada pela rua escura, deserta. Vacilou um instante (no fundo, era tímido), criou coragem e dirigiu-se a ela, chamando-a de gatinha ou algo do gênero.
A reação da moça foi extraordinária. Parou, encarou-o firmemente: "O que foi que você disse?".
Desconcertado, ele perguntou, já gaguejando, se podia acompanhá-la. E, antes que pudesse acrescentar qualquer coisa, antes que pudesse se apresentar, a surpresa: o pé dela veio como um aríete contra o seu peito, derrubando-o. E aí foi uma saraivada de golpes, de socos, de pontapés. Depois da surra, a moça se afastou, tranquilamente, deixando-o jogado sobre a calçada. Com grande esforço, ele se levantou e, cambaleando, tomou um táxi. O motorista, alarmado, perguntou o que tinha acontecido.
"Um assalto", disse ele. "Três caras enormes. Pediram o dinheiro, eu não entreguei, eles bateram pra valer."
No dia seguinte, cheio de hematomas, teve de repetir a explicação para os colegas de trabalho. "Esquece", disse um deles, "isso faz parte da vida."
Mas ele não esqueceria a humilhação pela qual tinha passado. Aquilo exigia vingança. Não hesitou: matriculou-se num curso de artes marciais e dedicou-se com afinco ao treinamento. Em poucos meses, já recebia rasgados elogios dos professores. Estava pronto para a desforra.
Naquela mesma noite, ficou de plantão na frente do prédio em que morava a moça. Por volta das onze, ela apareceu. Ele barrou-lhe o passo: "temos de conversar", disse. Ela nem hesitou: de novo, veio com tudo. E aí ele constatou que o treino tinha sido insuficiente. De novo, levou uma surra. Ela derrubou-o no solo, imobilizou-o. Os dois cara a cara, ela o beijou. Furiosamente.
Estão casados. Vivem muito bem, tratam-se amavelmente. Quando a relação ameaça ficar morna, ele a desafia para uma boa briga. Que sempre termina com os dois fazendo amor. Furiosamente, como convém a praticantes de artes marciais.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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