São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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RECEITA VIGIADA

Indústria usa informações para saber se médicos supostamente aliciados prescrevem os remédios que vende

Farmácia espiona médicos para laboratórios

André Porto/Folha Imagem
Francisco Caravante Júnior, do Conselho de Farmácia de São Paulo


CLÁUDIA COLLUCCI
DA REPORTAGEM LOCAL

Em troca de brindes ou dinheiro, farmácias e drogarias brasileiras auxiliam a indústria de remédios a vigiar as receitas prescritas por médicos. Com acesso a cópias do receituário, propagandistas dos laboratórios, muitas vezes, acabam pressionando os profissionais da saúde a indicar produtos da marca que representam.
Suspeita-se também que esse mecanismo seja utilizado para comprovar se os médicos beneficiados por favores dos laboratórios estão sendo realmente "parceiros" da indústria farmacêutica.
Entre esses favores estão desde o pagamento de viagens e de apresentações em eventos científicos até a reforma de consultórios. A Febrafarma nega a troca de favores.
O esquema dos laboratórios com as farmácias envolve o uso de máquinas copiadoras e de microfilme, oferecidas por empresas de consultoria ou propagandistas, para reproduzir as receitas.
Não há crime nessa prática porque inexiste legislação sobre o assunto no país. Mas, segundo os conselhos regionais de medicina e de farmácia, o repasse do receituário fere a ética profissional.
O farmacêutico José Cardoso, gerente de uma farmácia no centro de São Paulo, afirmou à Folha que, até 2004, repassou cópias de receita médica ao representante de uma empresa de consultoria a serviço de laboratórios.
Segundo ele, as receitas eram copiadas em uma máquina de fax, cedida por um rapaz chamado Rodrigo, representante da consultoria. Cardoso não sabe o nome da empresa e diz não ter ficado com o contato de Rodrigo.
A farmácia recebia R$ 0,20 por receita repassada. Por mês, reunia cerca de 300. "Sei que essas informações valem ouro para a indústria. Mas desisti de repassá-las porque era uma mixaria o que eles me pagavam. Dava um trabalhão ficar copiando as receitas, e muitos clientes não gostavam."
Ele diz que, recentemente, voltou a ser procurado por Rodrigo, que lhe ofereceu um software para o computador da farmácia. A idéia era que as informações da receita fossem colocadas no programa. "Ele propôs pagar mais pelas receitas, mas eu não quis."
O próprio presidente do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo, Francisco Caravante Júnior, diz que, quando era proprietário de farmácia, recebeu (e recusou) uma proposta para ceder informações do receituário médico a um laboratório em troca do aumento de clientela.
A farmácia ficava no centro de Santo André (ABC), perto de uma clínica cardiológica que teria recebido verba do laboratório para reformar os consultórios em troca da prescrição de remédios. Caravante não disse o nome do laboratório por não ter provas.
"A proposta era para eu oferecer um desconto no remédio, e os médicos indicariam a minha farmácia aos pacientes. Em contrapartida, ele [o propagandista do laboratório] me daria a maquininha para que as receitas fossem microfilmadas. A idéia era controlar a fidelidade dos médicos. Mandei o cara para o inferno."
A cobrança maior de "fidelidade" é feita sobre médicos que são beneficiados pelos laboratórios. Um endocrinologista carioca conta que, após viajar a Porto de Galinhas (PE) a convite de um laboratório para participar de um congresso, foi pressionado.
"O propagandista me disse claramente: "Sabe como é doutor, a gente sabe que o senhor não está indicando o nosso produto. Se o senhor não colaborar, não haverá mais convites". Disse que não aceitava aquele tipo de pressão e nunca mais fui convidado", diz.
Para Isac Jorge Filho, presidente do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, a interferência é uma "situação deplorável".


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