São Paulo, quarta-feira, 04 de outubro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

"Foram os 30 minutos mais assustadores da minha vida"

Joe Sharkey, repórter do "The New York Times" que estava no jatinho que se chocou com o Boeing da Gol, conta em artigo como foi o acidente

JOE SHARKEY
DO "NEW YORK TIMES"

ERA UM VÔO confortável, sem sobressaltos.
Com as cortinas fechadas, eu estava relaxando em minha poltrona de couro, a bordo de um jato executivo de US$ 25 milhões que voava 11 quilômetros acima da vasta floresta tropical amazônica.
As sete pessoas que ocupavam o jato com capacidade para 13 passageiros estavam repousando, sem conversas.
De repente, senti um terrível abalo e ouvi um estrondo alto, seguido por um silêncio perturbador. Apenas o zumbido das turbinas era audível.
E então as duas palavras que nunca vou esquecer: "Fomos atingidos", disse Henry Yandle, um passageiro que estava sentado na poltrona do corredor perto da cabine de pilotagem do Embraer Legacy 600.
"Atingidos? O que nos atingiu?", eu imaginei. Ergui a cortina. O céu estava claro, o sol começava a cair. A floresta se estendia interminável. Mas lá, na ponta da asa, vi os destroços, mais ou menos um metro de metal retorcido, na posição em que o winglet, de um metro e meio, costumava estar.
E assim começaram os 30 minutos mais assustadores da minha vida. Nos dias que se seguiram, ouvi de muita gente que ninguém sobrevive a uma colisão aérea.
Eu tive muita sorte por ter sobrevivido e só descobriria mais tarde que os 155 passageiros a bordo de um Boeing 737, que fazia uma rota doméstica e nos havia atingido, não tiveram a mesma sorte.
Os investigadores de acidentes ainda estão tentando descobrir o que aconteceu exatamente. Nosso jato, bem menor, se manteve no ar enquanto o Boeing 737, mais longo, largo e mais de três vezes mais pesado, despencou do céu em mergulho vertical.
Mas às 15h59 da última sexta-feira, tudo que eu conseguia ver, tudo que eu sabia era que parte da asa havia desaparecido. E estava claro que a situação piorava rapidamente. A parte frontal da asa estava perdendo rebites, e o revestimento metálico estava sendo arrancado da estrutura.
Para meu espanto, ninguém entrou em pânico. Os pilotos começaram calmamente a examinar os controles e os mapas, à procura de um aeroporto nas imediações, ou a olhar pela janela em busca de um local para um pouso de emergência.
Mas os minutos se passavam, e o avião continuava a perder velocidade. Àquela altura, todos sabíamos o quanto a situação era ruim. Eu imaginava o quanto uma aterrissagem forçada, eufemismo otimista para queda, poderia doer.
Pensei na minha família. Não fazia sentido pegar o celular e tentar ligar, não havia sinal. E enquanto nossas esperanças se apagavam, como o sol, alguns dos passageiros começaram a escrever bilhetes para os cônjuges e familiares e a guardá-los nas carteiras, na esperança de que viessem a ser localizados mais tarde.
Quando o vôo começou, as anotações que me ocupavam eram outras. Escrevo a coluna semanal "On the Road", para a seção de viagens de negócios do "The New York Times", há sete anos. Mas minha presença a bordo do Embraer 600 era um trabalho freelancer, para a revista "Business Jet Traveler".
Meus colegas a bordo incluíam executivos da Embraer e de uma empresa de táxi aéreo chamada ExcelAire, a nova proprietária do jato. David Rimmer, vice-presidente sênior da ExcelAire, havia me oferecido carona de volta aos Estados Unidos no jatinho que sua empresa acabara de receber da Embraer.
E o vôo começou muito bem. Minutos antes do acidente, eu fui à cabine conversar com os pilotos, que disseram que o aparelho estava apresentando excelente desempenho. Eu verifiquei nossa altitude no altímetro: 11 mil metros.
Voltei ao meu assento. Minutos depois veio a colisão (que, descobrimos mais tarde, também havia arrancado parte da cauda da aeronave).
Não tivemos muito tempo para conversar nos minutos que se seguiram ao acidente.
Rimmer, um homem corpulento, estava encolhido no assento diante do meu, observando a asa danificada.
"É muito grave?", eu perguntei. Ele me olhou fixamente e respondeu: "Não sei".
Percebi a linguagem corporal dos dois pilotos. Eram como soldados trabalhando em completa sintonia em uma situação de perigo, exatamente como foram treinados para agir.
Pelos 25 minutos que se seguiram, os pilotos Joe Lepore e Jan Paladino dividiram sua atenção entre os instrumentos e a busca por um aeroporto. Não tiveram sorte.
Enviaram pedidos de socorro pelo rádio, e um avião de carga que voava em algum lugar da região os recebeu. Não houve contato com qualquer outro avião, especialmente com um Boeing 737, no mesmo espaço aéreo.
Então, por entre as copas escuras das árvores, Lepore avistou uma pista de pouso. "Estou vendo um aeroporto", disse.
Os pilotos tentaram contatar a torre de controle do que, mais tarde, descobrimos ser uma base militar escondida nas profundezas da Amazônia. Eles manobraram o avião de maneira suave para evitar qualquer desgaste adicional na asa danificada. Quando se aproximaram mais da pista, conseguiram seu primeiro contato com o controle de tráfego aéreo.
"Não sabíamos qual era a extensão da pista de pouso, ou o que havia nela", diria Paladino, naquela noite, na base de Cachimbo, em meio à selva.
A aterrissagem foi rápida e árdua. Vi o esforço dos pilotos para manter o avião sob controle devido à perda de muitos dos comandos automatizados. Eles conseguiram completar o pouso com boa margem de segurança. Cambaleamos em direção à saída.
"Belo trabalho", eu disse aos pilotos quando passei por eles. Na verdade, inseri uma palavra que não se pode publicar entre "belo" e "trabalho".
"Estamos aqui para isso", disse Paladino com um sorriso de ansiedade.
Mais tarde, naquela noite, jantamos e tomamos cerveja bem gelada, na base militar. Especulamos sem parar sobre o que poderia ter causado o impacto. Um balão meteorológico descontrolado? Um jato de combate abandonado pelo piloto depois de problemas em alguma manobra arrojada? Um jato de passageiros que houvesse explodido nas proximidades, varrendo nosso avião com destroços?
Qualquer que tivesse sido a causa, ficou claro que passáramos por uma verdadeira colisão aérea, aquelas das quais ninguém sobrevive.
Em um momento de humor negro, no alojamento coletivo onde dormimos, eu disse "talvez estejamos todos mortos, e isso seja o inferno, reviver a experiência de virar a noite conversando e tomando cerveja, no dormitório da faculdade".
Por volta das 19h30, Dan Bachmann, executivo da Embraer e o único de nós que falava português, veio à mesa em que estávamos instalados no refeitório e nos contou o que lhe havia sido informado no escritório do comandante. Um Boeing 737 com 155 pessoas a bordo estava desaparecido, exatamente na região em que fôramos atingidos.
Antes daquele momento, nós estávamos brincando, rindo sobre a nossa experiência quase fatal. Éramos os "Sete do Amazonas", sobreviventes improváveis aos quais o tempo que vivíamos não mais pertenciam. Realizaríamos uma reunião anual e contaríamos uns aos outros a que dedicamos nossas vidas. Mas em lugar disso, nós inclinamos nossas cabeças em um longo momento de silêncio, interrompido pelo som de choro contido.
Ambos os pilotos, experientes na condução de jatos executivos, ficaram muito abalados. "Se alguém deveria ter caído, seríamos nós", repetia sem cessar Lepore, 42, de Bay Shore, Nova York.
Paladino, 34, de Westhampton, Nova York, mal conseguia falar. "Estou tentando me conformar com a perda de todas essas pessoas. E dói", disse.
Yandle disse aos pilotos "vocês são heróis, vocês salvaram nossas vidas". Eles sorriram, desanimados. Era evidente que o peso do que aconteceu ficaria com eles para sempre.
No dia seguinte, a base estava repleta de autoridades brasileiras investigando o acidente e dirigindo operações de busca pelo Boeing 737 perdido, o qual um oficial me disse estar em uma área menos de 160 quilômetros ao sul de nós, acessível apenas para desbravadores que abrissem uma picada na selva.
Também pudemos ver o nosso avião, que estava sendo estudado por inspetores. Ralph Michielli, vice-presidente de manutenção da ExcelAire e um dos passageiros do vôo, subiu comigo em um monta-cargas para me mostrar os danos sofridos pela asa, perto do winglet decepado.
Um painel próximo à parte frontal da asa exibia um rombo de mais de 30 centímetros. Manchas escuras perto da fuselagem mostravam um vazamento de combustível. Partes do estabilizador horizontal, na cauda, haviam sido esmagadas, e faltava um pedaço do elevon esquerdo.
Um inspetor militar brasileiro que observava o avião me surpreendeu por sua disposição de conversar, ainda que ele não soubesse muito inglês, e eu, português nenhum.
Ele estava especulando sobre o que poderia ter acontecido e, em resumo, disse o seguinte: ambos os aviões, inexplicavelmente, ocupavam a mesma posição e altitude ao mesmo tempo. Os pilotos do Boeing 737, que voava rumo ao sudeste, avistaram nosso Legacy 600 que voava rumo a noroeste, para Manaus, e conduziram uma frenética manobra de evasão. A asa do 737, varrendo o espaço entre nossa asa e a cauda elevada, nos atingiu duas vezes, e o avião maior então prosseguiu em sua espiral destrutiva.
A situação parecia impossível, reconheceu o inspetor. "Mas acredito que seja isso que aconteceu", disse. Ainda que ninguém ainda saiba ao certo a causa do acidente, três outros oficiais brasileiros me disseram ter sido informados de que ambos os aviões estavam na mesma altitude.
Por que eu, o passageiro mais próximo do impacto, não ouvi o som, o rugido de um grande 737?
Perguntei a Jeirgem Prust, piloto de testes da Embraer. Isso foi no dia seguinte, quando fomos transferidos da base, em um avião de transporte militar, para o comando da polícia de Cuiabá, cidade cujas autoridades têm jurisdição sobre a área de impacto e na qual pilotos e passageiros do Legacy 600, entre os quais eu, seriam interrogados até o nascer do dia por um comandante de polícia e seus tradutores.
Prust pegou a calculadora e saiu fazendo contas, computando o tempo disponível para que eu ouvisse o rugido de outro jato se aproximando, com os dois aparelhos voando a cerca de 800 km/h em direções opostas. Ele me mostrou o resultado: "Uma fração de segundo". Nós dois olhamos para os pilotos, esparramados, em pose deprimida, em um sofá do outro lado da sala.
"Esses caras e aquele avião salvaram nossas vidas", eu disse. "De acordo com os meus cálculos, sim", ele concordou.
Mais tarde imaginei que talvez o piloto do jato de passageiros brasileiro talvez também tenha salvo nossas vidas, devido à rapidez de sua reação. Pena que o mesmo não se aplique às vidas de seus passageiros.
No comando da polícia, fomos solicitados a escrever nossos nomes, endereços, datas de nascimento, ocupações e nível de educação, bem como os nomes de nossos pais. Também fomos submetidos a exame por um médico de cabelos compridos, usando um jaleco branco que lhe chegava quase aos pés. Tivemos de nos despir da cintura para cima, para sermos fotografados de frente e de perfil.
Isso, explicou o doutor cujo nome eu não descobri mas se descreveu como "médico forense", serviria para provar que não fomos torturados "de maneira alguma".
O humor negro voltou, apesar de nossas tentativas para desencorajá-lo.
"Aquele cara é o legista", explicou Yandle mais tarde, acrescentando: "Acho que isso quer dizer que estamos mesmo mortos".
Mas as risadas, não muito animadas, duraram pouco enquanto voltávamos a pensar incessantemente nos corpos ainda perdidos na selva e em como aquelas vidas e as nossas se haviam cruzado, literal e metaforicamente, por uma horrível fração de segundo.


Texto Anterior: Aeronáutica suspeita de defeito no Legacy
Próximo Texto: Avião caiu em círculos, diz testemunha
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.