São Paulo, sábado, 04 de outubro de 2008

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"Tribunal do crime" é negócio, diz promotor

Integrantes do Ministério Público afirmam que o PCC julga criminosos para manter área de ponto-de-venda de drogas livre da polícia

"Eles julgam porque têm uma visão mercantilista, querem trazer tranqüilidade para o local onde vendem drogas", afirma Roberto Wider Filho

ANDRÉ CARAMANTE
DA REPORTAGEM LOCAL

Os promotores Sandra Reimberg e Roberto Wider Filho, do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado) de Santo André (ABC), órgão do Ministério Público Estadual, investigaram nos últimos seis meses um dos núcleos mais atuantes da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) no que diz respeito aos "tribunais do crime" feitos na Grande SP.
Conforme a Folha revelou dia 21 de setembro, polícia e Promotoria, com auxílio de escutas telefônicas autorizadas pela Justiça, prenderam 27 pessoas ligadas ao PCC e acusadas de promover os "júris". Outras 20 foram identificadas. Até agora, nove vítimas desses "tribunais" foram identificadas. Os "tribunais" são "julgamentos" comandados por um presidiário do PCC que assume o papel de "juiz" para determinar, por meio de um celular, a morte ou não de uma pessoa -seja ela do PCC ou não.

 

FOLHA - O que são os "tribunais do crime" do PCC?
ROBERTO WIDER FILHO
- São tribunais de justiçamento com duas naturezas principais: uma é a manutenção da disciplina dentro da hierarquia do PCC. Eles condenam pessoas que lesam a facção criminosa e integrantes que não cumprem as ordens dentro da facção criminosa. A outra natureza é a de que esses tribunais se estendem às pessoas estranhas aos quadros da facção e aí é mais grave ainda, porque eles estão julgando, eles se arvoram no poder de julgar pessoas que nem sequer fazem parte daquela quadrilha.

FOLHA - E por quais motivos as pessoas sofrem esse justiçamento?
WIDER FILHO
- Eles julgam essas pessoas pelo cometimento de crimes comuns [homicídios, estupros etc], com a pena de morte aplicada muitas vezes.

FOLHA - Por que os criminosos do PCC julgam quem cometeu crimes comuns, mesmo quando esses crimes não são ligados à facção?
WIDER FILHO
- Eles julgam porque têm uma visão mercantilista, querem trazer tranqüilidade para o local onde vendem drogas. A finalidade principal da facção criminosa, a mais lucrativa, apesar de eles praticarem roubos, homicídios e muita corrupção, é o tráfico de drogas, fonte de renda mais lucrativa da facção, o que eles chamam na quadrilha de "sintonia do progresso", o que causa o incremento financeiro dentro da organização. Eles podem progredir se tiverem mais dependentes das drogas e, para eles, isso é progredir.

FOLHA - Qual é a lógica do PCC ao impor o terror dos justiçamentos?
WIDER FILHO
- Qualquer distúrbio no local de venda de drogas reduz o comércio e causa um prejuízo para eles. E o que eles tentam? Limpar a área em torno do comércio de drogas para que assim possam desenvolver a atividade criminosa deles com mais eficiência, a atividade de comércio de drogas.

FOLHA - Esses justiçamentos ocorrem para tentar afastar a ação do Estado e seu braço policial?
WIDER FILHO
- Exatamente, isso é uma preocupação permanente dos criminosos do PCC.
SANDRA REIMBERG - No caso de um estupro [cujo justiçamento foi gravado pelos promotores do Gaeco/ABC], eles demonstram a preocupação com a polícia e falam assim: "Ah, a mãe da menina [supostamente violentada] falou que vai chamar a polícia", mas aí eles falam para não chamar a polícia porque eles [os criminosos do PCC] exigem que seja chamada a liderança da disciplina [integrante do PCC em liberdade] da região para resolver o caso.
Não é para chamar a polícia.

FOLHA - O que acontece quando a pessoa pede ajuda à polícia?
WIDER FILHO
- Se acionar a polícia, aquela vítima não vai ter a assistência da facção criminosa. Mas por que não pode chamar a polícia? Porque a polícia vai fazer diligência, vai vir viatura e aí o comércio de drogas tem uma interferência. Eles têm uma orientação bem clara: se chamar a polícia, a gente não vai julgar o suposto autor do crime naquela região.
REIMBERG - A pessoa que não é integrante da quadrilha, mas cometeu um crime na área onde o PCC vende drogas vai atrair a polícia e vai ser julgado.
E vai ser julgado não porque cometeu um crime, mas, sim, por ter provocado a ação policial e por atrapalhar o tráfico.

FOLHA - Essas ações do PCC influenciam, por exemplo, o não cometimento de um homicídio?
WIDER FILHO
- O homicídio é, dentre aqueles crimes que se comete, o que causa maior interferência no tráfico. Porque o corpo fica lá horas, tem de vir o Instituto de Criminalística, depois vai ter de vir o IML [Instituto Médico Legal], a Polícia Civil, a Polícia Militar vai preservar o local do homicídio.
Um homicídio em determinada área vai chamar a atenção de órgãos do Estado durante um dia inteiro e o comércio de drogas está parado. O homicídio é um crime que tem uma reação muito grande do PCC. Se ocorreu um homicídio, vai ser um prejuízo grande no tráfico.
REIMBERG - Agora, por que a taxa de homicídios tem sofrido baixas constantes no Estado de São Paulo? A pessoa que está naquela comunidade dominada pelo PCC pensa duas vezes antes de matar. Ela sabe que se matar sem autorização do PCC ela vai morrer. E de uma forma rápida. Na lógica deles, vida com vida se paga. Essa é a forma de você conseguir impedir que alguma coisa aconteça. Se acontecer, você ter punição rápida e grave. É isso o que o PCC faz: se você matar alguém sem autorização da facção, você vai morrer. Por isso reduz a taxa de homicídios.

FOLHA - Mas o Estado tem realizado ações para baixar o número de homicídios há alguns anos...
REIMBERG
- Claro que existem várias políticas do Estado para diminuir os homicídios. Agora, esse tipo de homicídio que a gente está acostumado a ver por briga de ponto de tráfico reduziu. Quantas mortes tem por briga de ponto de tráfico? É tudo do PCC, não é como, por exemplo, no Rio de Janeiro, onde um morro briga com o outro.
Não tem isso. Está tudo dominado pelo PCC.

FOLHA - Quem são os criminosos que assumem o papel de "juiz" nesses justiçamentos do PCC?
WIDER FILHO
- São pessoas despreparadas, com o conhecimento da vida do crime, mas obviamente são pessoas despreparadas julgando cidadãos.
E você vê o cidadão tendo de prestar contas, com a pena de morte, com a espada sobre a cabeça. A espada é a pena de morte, literalmente. O cidadão tem de prestar contas para os integrantes da facção criminosa.
Isso é o oposto do Estado de direito completamente.
REIMBERG - É aquela história, por que essa mãe da menina estuprada não procura a delegacia e prefere procurar o PCC?
Porque, com certeza, ao menos no meu ponto de vista, o desespero dela é muito grande e ela quer resolver a situação. E a situação para eles vai ser melhor e mais prontamente resolvida com o PCC do que com a Justiça. Porque vai na delegacia, vai ter de fazer laudo e, daqui três anos, vai sair uma sentença.
Eles querem Justiça rápida e com as próprias mãos.

FOLHA - Como o Estado tem de agir para mudar essa atuação terrorista dos criminosos do PCC?
WIDER FILHO
- A questão é ter uma visão macro. Isso só existe dessa forma, esses justiçamentos, porque existe uma organização criminosa poderosa atuando plenamente. Para mudar isso, o Estado tem de ser mais firme em vários campos.
Primeiro, na contenção do preso e da criminalidade dentro dos presídios. Isso é um dever do Estado. Por meio do [telefone] celular principalmente. O sistema penitenciário tem servido para a contenção do criminoso e não da criminalidade.

FOLHA - Os presídios de São Paulo não contêm a criminalidade?
WIDER FILHO
- O criminoso está efetivamente preso, mas ele continua no exercício da atividade criminosa dele. E isso é uma decadência, é o fim do Estado. Porque o sistema não contém a criminalidade, ele não se presta para aquilo. O sistema penitenciário tem de servir tanto para a contenção do criminoso quanto da criminalidade. A pessoa não pode ficar de dentro do sistema prisional operando uma organização criminosa. A questão é de rigor, rigor na visita, rigor no celular, rigor na fiscalização efetiva da pessoa no sistema.


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