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São Paulo, quinta-feira, 04 de dezembro de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

"Punidade" e "impunidade"

Os leitores que já passaram dos 30 certamente se lembram do episódio do "imexível", protagonizado pelo ex-ministro Antônio Rogério Magri.
Já tratei desse caso há uns bons anos, mas talvez não custe relembrá-lo. Um belo dia (em 1990, salvo engano), o então ministro do Trabalho disse que só o presidente (Fernando C. de Mello) a cujo governo servia era "imexível".
O mundo desabou na cabeça de Magri. O motivo da chacota era o fato de não haver registro da palavra "imexível". De fato não havia registro de "imexível" (o "Houaiss", lançado em 2001, já registra o termo; o "Novo Aurélio Século XXI", lançado em 1999, não lhe dá abonação).
Embora carecesse e careça de uso, de lastro, de tradição -fatos que justificam o registro de uma palavra nos dicionários-, o termo "imexível" é formado de acordo com os cânones da língua. Em "imexível", encontra-se o sufixo latino "-vel", assim definido pelo "Aurélio": "Formador de adjetivos, a partir de radical verbal latino (...), ou vernáculo, e que significa "digno de", "passível de praticar ou sofrer determinada ação'".
Na explicação do "Aurélio", a palavra "vernáculo" ("relativo ao idioma de um país") é a chave para que se desvende o nó da questão: o verbo "mexer" é vernáculo, ou seja, é da nossa língua. Magri fez com "mexer" o que já se fazia com "tocar" ("intocável"), "negociar" ("inegociável"), "ler" ("ilegível"), "crer" ("incrível") etc.
O fato que explica a "criação" do termo "imexível" é o mesmo que explica a formação de palavras como "pobríssimo", "magríssimo" ou "docíssimo", que muita gente julga "erradas". São legítimas (e registradas), já que se constroem a partir da forma portuguesa (vernácula, portanto) dos adjetivos "pobre", "magro" e "doce", respectivamente. Quem prefere a forma erudita, baseada no radical latino, opta por "paupérrimo", "macérrimo" e "dulcíssimo", respectivamente, ao empregar o superlativo absoluto sintético dos adjetivos citados.
E de onde vêm as palavras que estão no título desta coluna? Vêm de um pronunciamento do presidente da República. Na semana passada, ao comentar a proposta de mudança da maioridade penal, Lula empregou a palavra "punidade", o que bastou para muita gente desferir golpes no português do presidente.
O termo "punidade" de fato não encontra registro nos dicionários. Para "qualidade ou caráter de punível", registra-se a palavra "punibilidade", que, como todas as derivadas de adjetivos terminados em "-vel" (como "punível"), volta à origem e troca o "v" por "b" na passagem para o substantivo abstrato (de "amável" se faz "amabilidade"; de "visível" se obtém "visibilidade"; de "legível" se forma "legibilidade").
"Impunidade" aparece nos dicionários como "estado de impune". Por sua vez, "impune" é "que escapa ou escapou à punição; que não é ou não foi castigado; impunido". Como se vê, o emprego acidental de "punidade" não é motivo para nenhum terremoto.
Por fim, talvez seja bom aproveitar o tema para lembrar que "punir" pode significar "infligir pena; dar castigo; castigar" e que não se deve confundir "infligir" com "infringir". "Infringir" ("desrespeitar") é o que mais se faz no Brasil; "infligir" ("aplicar pena") é o que menos se faz. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

E-mail - inculta@uol.com.br


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