São Paulo, segunda-feira, 04 de dezembro de 2006

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MOACYR SCLIAR

Brincando com fogo


No meu aperitivo saboreio algumas brasas para abrir o apetite. No almoço ou na janta devoro tições inteiros

 Show de pirofagia causa incêndio em uma casa noturna na Vila Olímpia, bairro da zona sul de São Paulo que concentra bares e boates freqüentados por jovens de classe média e alta. O incêndio começou quando um artista fez apresentação em que cuspia fogo, próximo ao teto feito de material inflamável. As chamas se alastraram e destruíram a casa toda. Houve correria e quatro pessoas ficaram intoxicadas pela fumaça. Cotidiano, 26 de novembro

"PREZADO colunista: não costumo escrever para jornais. Aliás, não costumo sequer lê-los; no lugar em que vivo, essas coisas (e também revistas, e rádio, e televisão) são perfeitamente dispensáveis. Mas, por acaso, tomei conhecimento desse grotesco incidente que ocorreu aí onde vocês vivem, na cidade chamada São Paulo, e não pude conter minha indignação. Na verdade eu deveria ter até achado graça dessa história, mas há momentos em que, francamente, os seres humanos ultrapassam todos os limites do respeito.
A notícia fala em um show de pirofagia. Pelo que lembro do grego, pirofagia quer dizer comer fogo. Isso, senhor colunista, é uma deslavada mentira. Essas pessoas, esses pseudo-pirófagos, não comem fogo.
Fingem que comem fogo, que cospem fogo, mas só fingem. É apenas um truque, primário e constrangedor. Falo com autoridade, senhor colunista. Porque o fogo faz parte da minha vida, do meu trabalho, dos meus domínios, e isso há muito tempo -poderíamos até falar de uma eternidade, mas como o conceito para muitos é discutível, não usarei o termo. Agora, não tenha dúvida: conheço fogo.
E mais, adoro fogo. A visão das chamas erguendo-se gloriosas me comove até as lágrimas. E como fogo, sim senhor. Não como os pirógafos mencionados na notícia. Eu como fogo de verdade.
Por exemplo, no meu aperitivo saboreio algumas brasas para abrir o apetite. No almoço ou na janta às vezes devoro tições inteiros. O calorzinho que eu sinto por dentro é, para dizer o mínimo, delicioso. Queimaduras? Não sei o que é isso. Sou, por assim dizer, imune às chamas.
Isso, prezado colunista, é fruto de uma longa experiência. Ninguém sabe mais sobre o fogo do que eu, ninguém.
Posso dar cursos a respeito, cursos de graduação e de pós-graduação, e na verdade de certa forma tenho feito isso. As pessoas que aqui recebo logo adquirem intimidade com as chamas. Se elas gostam? Acho que não. Mas a mim não importa. O senhor vê, o sofrimento dos seres humanos não me comove. Até me divirto com isso.
Mas o que não me diverte, o que me deixa furioso, é esse desrespeito com o fogo, uma coisa que é venerada desde que o mundo existe. O fogo, caro colunista, purifica. O fogo destrói o pecado que está entranhado na carne das pessoas.
Portanto, brincar com fogo é uma abominação. Que eu, no devido tempo, castigarei. Com fogo, naturalmente. Fogo legítimo, autêntico, não fogo usado em truques. Aguardo, com prazer, a visita de meus futuros hóspedes. Quem sou? Bem, não tenho carteira de identidade. Mas pode me chamar de Satanás."


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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