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MOACYR SCLIAR
Brincando com fogo
No meu aperitivo saboreio algumas brasas para abrir o apetite. No almoço ou na janta devoro tições inteiros
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Show de pirofagia causa incêndio em
uma casa noturna na Vila Olímpia, bairro da zona sul de São Paulo que concentra bares e boates freqüentados por jovens de classe média e alta.
O incêndio começou quando um artista
fez apresentação em que cuspia fogo,
próximo ao teto feito de material inflamável. As chamas se alastraram e destruíram a casa toda. Houve correria e
quatro pessoas ficaram intoxicadas pela
fumaça.
Cotidiano, 26 de novembro
"PREZADO colunista: não
costumo escrever para
jornais. Aliás, não costumo sequer lê-los; no lugar em que vivo, essas coisas (e também revistas, e
rádio, e televisão) são perfeitamente
dispensáveis. Mas, por acaso, tomei
conhecimento desse grotesco incidente que ocorreu aí onde vocês vivem, na cidade chamada São Paulo,
e não pude conter minha indignação. Na verdade eu deveria ter até
achado graça dessa história, mas há
momentos em que, francamente, os
seres humanos ultrapassam todos
os limites do respeito.
A notícia fala em um show de pirofagia. Pelo que lembro do grego,
pirofagia quer dizer comer fogo.
Isso, senhor colunista, é uma deslavada mentira. Essas pessoas, esses
pseudo-pirófagos, não comem fogo.
Fingem que comem fogo, que
cospem fogo, mas só fingem. É apenas um truque, primário e constrangedor.
Falo com autoridade, senhor colunista. Porque o fogo faz parte da minha vida, do meu trabalho, dos meus
domínios, e isso há muito tempo
-poderíamos até falar de uma eternidade, mas como o conceito para
muitos é discutível, não usarei o termo. Agora, não tenha dúvida: conheço fogo.
E mais, adoro fogo. A visão
das chamas erguendo-se gloriosas
me comove até as lágrimas.
E como fogo, sim senhor. Não
como os pirógafos mencionados na
notícia. Eu como fogo de verdade.
Por exemplo, no meu aperitivo
saboreio algumas brasas para abrir o
apetite. No almoço ou na janta às
vezes devoro tições inteiros. O calorzinho que eu sinto por dentro é, para
dizer o mínimo, delicioso. Queimaduras? Não sei o que é isso. Sou,
por assim dizer, imune às chamas.
Isso, prezado colunista, é fruto de
uma longa experiência. Ninguém
sabe mais sobre o fogo do que eu,
ninguém.
Posso dar cursos a respeito, cursos
de graduação e de pós-graduação, e
na verdade de certa forma tenho feito isso. As pessoas que aqui recebo
logo adquirem intimidade com as
chamas. Se elas gostam? Acho que
não. Mas a mim não importa. O senhor vê, o sofrimento dos seres humanos não me comove. Até me divirto com isso.
Mas o que não me diverte, o que
me deixa furioso, é esse desrespeito
com o fogo, uma coisa que é venerada desde que o mundo existe. O fogo,
caro colunista, purifica. O fogo destrói o pecado que está entranhado
na carne das pessoas.
Portanto, brincar com fogo é uma
abominação. Que eu, no devido
tempo, castigarei. Com fogo, naturalmente. Fogo legítimo, autêntico,
não fogo usado em truques. Aguardo, com prazer, a visita de meus
futuros hóspedes. Quem sou? Bem,
não tenho carteira de identidade.
Mas pode me chamar de Satanás."
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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