São Paulo, segunda-feira, 05 de janeiro de 2004

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MOACYR SCLIAR

As surpresas de um novo ano

Doações incluem recados e "cantadas". Além das caixinhas individuais de final de ano, existem também as caixinhas coletivas, que ficam nos balcões de padarias, lanchonetes, bares e farmácias. Numa lanchonete, oito funcionários aguardavam ansiosamente a abertura da caixa, que, além das doações, continha recadinhos e "cantadas" para as garçonetes.
Folha Online, 25.dez.2003

A dona da lanchonete estava acostumada a encontrar na caixinha recados para as garçonetes, mas, na véspera do Ano Novo, surpreendeu-se ao ver ali um pequeno envelope azul com seu próprio nome. Quem o teria colocado na caixinha? Perguntou aos funcionários; ninguém sabia. Decerto a coisa fora feita de maneira sub-reptícia, talvez com a ajuda de uma outra pessoa. Mas era estranho, aquilo, muito estranho. Mulher de meia-idade, divorciada e amargurada, a dona do estabelecimento não tinha relações com outras pessoas, nem queria tê-las. Chegou a pensar em jogar fora o envelope, mas, depois de certa hesitação, acabou por abri-lo. Continha uma curta missiva, escrita numa bem caprichada letra. Você não me conhece, dizia o misterioso remetente, que se assinava apenas com um R. "Mas eu a admiro há muito tempo. Sempre passo por aqui e olho para você. Vejo em você uma mulher enérgica, digna, bela. Minha timidez impediu-me de dirigir-me a você e tive de recorrer a alguém para colocar essa carta na caixinha, mas é que agora estou decidido: quero começar 2004 a seu lado. Para isso, acho que precisamos nos encontrar." E marcava um encontro num restaurante elegante para a noite de 2 de janeiro.
A carta deixou-a surpresa e perturbada. Desde seu divórcio, muito doloroso (o marido traía-a descaradamente) não mais tivera contato com homens. Mas a candura do misterioso R., sua aparente sinceridade e sobretudo a frase "quero começar 2004 a seu lado", foram decisivas. Decidiu arriscar. O máximo que pode acontecer, pensou, é eu não gostar desse homem e cortar a coisa logo no início. E se desse certo, bem, nesse caso 2004 poderia ser o ano da virada em sua vida.
Vestiu-se caprichosamente, chegou a colocar as jóias que eram herança de sua mãe e que quase nunca usava. E, na hora marcada, tomou um táxi e dirigiu-se para o restaurante, que ficava numa rua estreita e pouco iluminada.
Não chegou ao local. Foi assaltada antes. Um homem arrancou-lhe a bolsa e as jóias e, depois de golpeá-la com a coronha do revólver, saiu correndo. Tonta, o sangue escorrendo de um ferimento na cabeça, ela foi socorrida por uma caridosa mulher e levada para o hospital.
Já recuperada, trata de esquecer o ocorrido. Não foi este o primeiro desgosto que a vida lhe deu. Mais: está convencida que o bandido não é outro senão o gentil missivista, que queria, como todo o mundo, começar 2004 com um sucesso em sua carreira.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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