São Paulo, quarta-feira, 05 de janeiro de 2011

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ANTONIO PRATA

Meias


A gente acha que difícil são as grandes decisões. Às vezes, são as pequenas escolhas que dilaceram o coração

A GENTE SEMPRE acha que a mudança virá de grandes resoluções: parar de fumar, pedir demissão, declarar-se à Regininha do RH. Às vezes, contudo, são as pequenas atitudes que alteram definitivamente a rota de nossas vidas. Nessa segunda-feira, por exemplo, pela primeira vez em 33 anos, saí para comprar meias. Sou um novo homem.
Talvez o leitor ache que estou exagerando. É que não teve o desprazer de conhecer minha gaveta de meias até 48 horas atrás. Mais parecia "saloon" de velho oeste: poucos pares, estropiados, cada um vindo de um canto -tenazes sobreviventes de diferentes etapas da minha vida.
As três brancas, de algodão, haviam sido ganhas na compra de um tênis de corrida, lá por 98. A marca da loja já quase não se lia, escrita no elástico esgarçado. Pior que as brancas estavam as azuis, da Varig, do tempo em que a ponte aérea era feita pelos Electras, e as aeromoças davam brindes, não broncas.
O pé da meia azul não tinha curva no calcanhar nem na canela: assemelhava-se a um coador de café dos Smurfs. Ou dos Na'vi. O elástico era frouxo, mas o laço afetivo não, de modo que as seguia usando, ano após ano, mesmo diante dos encarecidos apelos de minha mulher.
Em bom estado mesmo só as cinza, com losangos, que peguei para completar o valor na troca de uma jaqueta, presente de natal em, sei lá, 2002. Era a minha "meia de sábado", aquela que vestia para jantares, casamentos e entrevistas de emprego. Além dessas, havia mais três ou quatro, que de tão ordinárias nem merecem meu comentário.
Ah, caro leitor, eu era infeliz e não sabia! Uma vida com poucas meias é uma vida de expectativa e ansiedade. Toda manhã aquele suspense ao abrir a gaveta: quais estariam ali, quais andariam na longa peregrinação que passa pelo cesto, pela máquina, pelo varal?
Cheguei ao fundo do poço na sexta, 31, dez da noite. Minha mulher batia na porta do banheiro, apressando-me para a ceia, enquanto eu, sentado no chão de azulejos, encaixava as meias cinza na boca do secador de cabelos. Não queria virar o ano com os pés úmidos nem gostaria que todos me vissem, quando tirasse os sapatos para pular sete ondinhas, com as velhas meias da Varig.
Naquele momento de angústia, por trás do ruído aeronáutico do secador, dos meus gritos e dos gritos de minha mulher, pude ouvir uma voz grave, que vinha de toda parte e de parte alguma: "Antonio: tu és homem feito. Pagas as contas e impostos em dia. És casado, asseado, vacinado: por que vives nesta penúria?"
Se eu soubesse como era fácil, tinha feito antes: nem cem reais, caro leitor, custou minha alforria. Hoje, se quiser, posso ir a três entrevistas de emprego, dois jantares, seis casamentos e jogar futebol, no mesmo dia, sem repetir as meias. Não terei mais que pensar no assunto até 2019, no mínimo.
Quer dizer, mais ou menos: pois enquanto contemplo a gaveta multicolorida -de "saloon" do velho oeste, transformou-se em baile da corte- minha mulher aparece no quarto, segurando as meias da Varig com as pontas dos dedos, como se fossem camisinhas usadas: "Posso jogar no lixo?"
A gente sempre acha que difícil é tomar as grandes decisões: parar de fumar, pedir demissão, declarar-se à Regininha do RH. Às vezes, contudo, são as pequenas escolhas que mais dilaceram o coração.

antonioprata@uol.com.br

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