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DESAFINANDO A HISTÓRIA
A alusão como estratégia
MANOLO FLORENTINO
As escolas paulistanas se impuseram a difícil tarefa de traduzir 500 anos em 14 capítulos cronologicamente dispostos.
Resultado: letras de sambas
com estruturas claramente alusivas -isto é, calcadas em palavras ou frases que evocam processos históricos sem nomeá-los
diretamente.
Algumas produziram referências precisas e plenas de significado historiográfico. Outras ficaram pelo caminho.
Os sambas do primeiro dia de
desfile de São Paulo cantaram a
vigência prática da situação colonial (1500-1808).
A letra da Tom Maior desvela
as duas primeiras décadas dessa
história através de singelas imagens e significativos jogos de palavras, sem desperdícios.
"Caravelas portuguesas/indo
em busca de riquezas/é preciso
navegar" sintetiza a expansão
marítima e comercial, resposta
necessária à grande crise vivida
pelo feudalismo desde o século
14. Até a clássica tese da acidentalidade da descoberta é questionada ("Será golpe do destino?
encontrar...").
O edenismo e a inocência do
aborígene, destacados por vasta
literatura coeva, também estão
presentes. Mas bonito mesmo é
associar a carta de Caminha -
"precisa e fluente"- a uma espécie de certidão de nascimento
do país.
A despeito do que disse aqui
na Folha o presidente da X-9
Paulistana, "Quem é Você, Café?" é a mais bem-sucedida estrutura alusiva dentre os sambas
do primeiro dia de desfile.
Letra simples, é redonda já na
entrada ("Bota água para ferver,
no Anhembi"), e sua lúdica concepção não encobre a precisão
histórica.
Entidade antropomórfica, a
semente trazida por Palheta
mergulha no tempo -porque
"a preta velha, escrava contou"-, diz que virou ouro, que
se tornou "rei da exportação" e
assistiu aos principais acontecimentos "da Colônia à República".
Genial a mescla do café com o
negro: "E no meu sonho eu vi,
tudo colorir/e perfumar a cidade
inteira/na mais linda cor, no
mais quente sabor/da raça brasileira".
"Mare Liberum nas Terras de
Ibirapitanga", da Camisa Verde
e Branco, contempla o que de
mais importante ocorreu de
1520 a 1580. Destaque para as
alusões à União Ibérica e a Caramuru e Paraguaçu, ícones da
mamelucagem -a mestiçagem
fundamental dos primeiros séculos.
Em "Brasil Holandês", a Mocidade Alegre introduz a discutível
associação entre Nassau e o iluminado benefactor; e também
-mérito- a nem sempre mencionada cadeia de empréstimos
que garantiu a aliança entre os
senhores nordestinos e o capital
comercial holandês.
Igualmente correto é "Um Vôo
para a Liberdade", que de modo
erudito permite à Gaviões da Fiel
inscrever os anos 1770-1808 no
contexto da grande Revolução
Atlântica.
Clássicas são as referências à
conjuntura brasileira da época: a
Inconfidência Mineira, a Revolta
dos Alfaiates, a fuga dos Bragança das tropas de Junot e a hegemonia inglesa (""au revoir", lá
vem o rei/de Portugal com a riqueza e a nobreza/para favorecer a poderosa corte inglesa/abriu as portas para o mundo").
Pena que o samba da Leandro
de Itaquera não esteja à altura
dos anteriores. Embora quase
completa nas referências históricas, a letra não consegue compor
imagens esclarecedoras do complexo capítulo da mineração.
De certo modo, o mesmo
ocorre com "Formação do Povo
Brasileiro" (1654-1700), da
Águia de Ouro, mas com alguns
agravantes: nela o português forma a nação, cabendo ao índio legar aspectos francamente caricaturais ("Índio canta, índio bate
tambor/índio dança, índio é arte
e amor").
Igualmente limitada é a alusão
a Zumbi dos Palmares -"Sou
força, sou graça/guerreiro da raça/um sonho de liberdade"-,
pois, embora cronologicamente
correta, remete tão somente à resistência negra, uma dentre as
múltiplas faces da escravidão no
Brasil.
Manolo Florentino é historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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