São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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DESAFINANDO A HISTÓRIA

A alusão como estratégia

MANOLO FLORENTINO
As escolas paulistanas se impuseram a difícil tarefa de traduzir 500 anos em 14 capítulos cronologicamente dispostos.
Resultado: letras de sambas com estruturas claramente alusivas -isto é, calcadas em palavras ou frases que evocam processos históricos sem nomeá-los diretamente.
Algumas produziram referências precisas e plenas de significado historiográfico. Outras ficaram pelo caminho.
Os sambas do primeiro dia de desfile de São Paulo cantaram a vigência prática da situação colonial (1500-1808).
A letra da Tom Maior desvela as duas primeiras décadas dessa história através de singelas imagens e significativos jogos de palavras, sem desperdícios.
"Caravelas portuguesas/indo em busca de riquezas/é preciso navegar" sintetiza a expansão marítima e comercial, resposta necessária à grande crise vivida pelo feudalismo desde o século 14. Até a clássica tese da acidentalidade da descoberta é questionada ("Será golpe do destino? encontrar...").
O edenismo e a inocência do aborígene, destacados por vasta literatura coeva, também estão presentes. Mas bonito mesmo é associar a carta de Caminha - "precisa e fluente"- a uma espécie de certidão de nascimento do país.
A despeito do que disse aqui na Folha o presidente da X-9 Paulistana, "Quem é Você, Café?" é a mais bem-sucedida estrutura alusiva dentre os sambas do primeiro dia de desfile.
Letra simples, é redonda já na entrada ("Bota água para ferver, no Anhembi"), e sua lúdica concepção não encobre a precisão histórica.
Entidade antropomórfica, a semente trazida por Palheta mergulha no tempo -porque "a preta velha, escrava contou"-, diz que virou ouro, que se tornou "rei da exportação" e assistiu aos principais acontecimentos "da Colônia à República".
Genial a mescla do café com o negro: "E no meu sonho eu vi, tudo colorir/e perfumar a cidade inteira/na mais linda cor, no mais quente sabor/da raça brasileira".
"Mare Liberum nas Terras de Ibirapitanga", da Camisa Verde e Branco, contempla o que de mais importante ocorreu de 1520 a 1580. Destaque para as alusões à União Ibérica e a Caramuru e Paraguaçu, ícones da mamelucagem -a mestiçagem fundamental dos primeiros séculos.
Em "Brasil Holandês", a Mocidade Alegre introduz a discutível associação entre Nassau e o iluminado benefactor; e também -mérito- a nem sempre mencionada cadeia de empréstimos que garantiu a aliança entre os senhores nordestinos e o capital comercial holandês.
Igualmente correto é "Um Vôo para a Liberdade", que de modo erudito permite à Gaviões da Fiel inscrever os anos 1770-1808 no contexto da grande Revolução Atlântica.
Clássicas são as referências à conjuntura brasileira da época: a Inconfidência Mineira, a Revolta dos Alfaiates, a fuga dos Bragança das tropas de Junot e a hegemonia inglesa (""au revoir", lá vem o rei/de Portugal com a riqueza e a nobreza/para favorecer a poderosa corte inglesa/abriu as portas para o mundo").
Pena que o samba da Leandro de Itaquera não esteja à altura dos anteriores. Embora quase completa nas referências históricas, a letra não consegue compor imagens esclarecedoras do complexo capítulo da mineração.
De certo modo, o mesmo ocorre com "Formação do Povo Brasileiro" (1654-1700), da Águia de Ouro, mas com alguns agravantes: nela o português forma a nação, cabendo ao índio legar aspectos francamente caricaturais ("Índio canta, índio bate tambor/índio dança, índio é arte e amor").
Igualmente limitada é a alusão a Zumbi dos Palmares -"Sou força, sou graça/guerreiro da raça/um sonho de liberdade"-, pois, embora cronologicamente correta, remete tão somente à resistência negra, uma dentre as múltiplas faces da escravidão no Brasil.


Manolo Florentino é historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


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