São Paulo, quinta-feira, 05 de abril de 2007

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PASQUALE CIPRO NETO

"Cantor apanha até a morte de PMs"

Se a frase "Cantor apanha de PMs até a morte" é da voz ativa, que ação pratica o cantor? A de apanhar?

NA SEMANA passada, ao comentar o texto da embalagem de um medicamento ("Dor, febre, revigorante, congestão nasal, coriza"), referi-me ao que se vê com certa freqüência em títulos jornalísticos, nos quais a necessidade de atender aos ditames da diagramação pode falar mais alto do que a de redigir de modo claro e coeso.
E não é que um colega da Redação me mostrou mais uma preciosidade do ramo? Ei-la: "Cantor apanha até a morte de PMs no MA". Publicado há doze dias, o título se refere a mais um dos tristes capítulos da interminável megabarbárie brasileira. Eu já tinha ficado fulo da vida quando ouvi a notícia pela televisão: "Confundido com assaltante, músico é espancado por PMs até a morte". O leitor notou o que pode haver por trás da frase? Parece haver uma desculpa para o crime da polícia (se o morto de fato fosse um assaltante...). Estamos tão impregnados de megabarbárie que a deixamos escapar em frases "ingênuas". No Brasil, ainda se acha que milicos têm o legítimo direito de decidir quem vive e quem morre. É o fim do fim do fim. Mas voltemos ao título jornalístico ("Cantor apanha até a morte de PMs..."). Tomado ao pé da letra, que informa ele? Que o suplício do músico terminou no momento em que certos PMs morreram. Para variar, o busílis está na regência. A preposição "de" (que integra a expressão "de PMs") é regida pelo substantivo "morte" ou pelo verbo "apanhar"?
Parece claro que a intenção do redator era informar que o músico apanhou de PMs até a morte, portanto o regente da expressão "de PMs" é o verbo "apanhar". A redação mais "limpa" da frase seria algo como "Cantor apanha de PMs até a morte no MA". A expressão adverbial "no MA" poderia ficar no início da frase, mas isso é outra história. Como já afirmei em outras ocasiões, textos como o da embalagem do medicamento ou o que vimos hoje constituem um dos pratos prediletos das bancas examinadoras de vestibulares importantes. Pede-se ao candidato que aponte as possíveis interpretações decorrentes do modo como foi estruturada a frase. Pede-se também que identifique o tipo de problema (de regência, no exemplo visto) que gera a ambigüidade. Convém aproveitar a frase do jornal ("Cantor apanha até...") e a da televisão ("Confundido com assaltante, músico é espancado...") para analisar a questão da voz verbal. Na escola, essa abordagem costuma ser formal, ou seja, prende-se à forma do verbo. Assim, a primeira construção ("Cantor apanha...") é dada como ativa, e a segunda ("...músico é espancado...") é dada como passiva, porque a flexão verbal ("é espancado") é composta pelo verbo "ser" ("é") e por um particípio ("espancado"), o que é típico da voz passiva.
Costuma-se dizer também que, na voz ativa, "a ação verbal parte do sujeito ("Aurélio") ou "o sujeito pratica a ação" ("Houaiss"). Tudo bem, tudo bem, mas perguntar não ofende: se a frase "Cantor apanha de PMs até a morte" é da voz ativa, que ação pratica o cantor? A de apanhar e morrer? A questão é outra, caro leitor. Note que em nenhum dos dois casos o sujeito gramatical é "PMs". Antepostos aos verbos, os sujeitos são, respectivamente, "cantor" ("Cantor apanha...") e "músico" ("...músico é espancado..."). Para pensar. É isso.

inculta@uol.com.br


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