São Paulo, domingo, 05 de junho de 2005

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GILBERTO DIMENSTEIN

Assassinato zero

Até o final da redação desta coluna, na sexta-feira à noite, o Jardim Ângela, um distrito na zona sul de São Paulo, tinha completado 45 dias sem um só assassinato.
Um aglomerado de bairros com 300 mil habitantes, a maioria dos quais vivendo abaixo ou pouco acima da linha de pobreza, o distrito foi considerado pela Organização das Nações Unidas, em 1996, o local mais violento do planeta. Desbancou até mesmo Cali, na Colômbia.
Desde aquele anúncio feito pela ONU, a situação ficou ainda pior no Jardim Ângela. Em 2001, o número de assassinatos bateu recorde: 277, segundo o registro de óbitos da prefeitura. A partir de então, o índice vem caindo ano a ano e, em 2004, chegou a 151 assassinatos, uma redução de 54%. O assassinato zero dos últimos 45 dias sugere a continuidade da tendência de baixa.
Primeira conclusão: ninguém tem o direito de dar opinião sobre os meios de prevenir a violência no Brasil sem estudar o fenômeno Jardim Ângela.
Mesmo com o assassinato zero e os avanços conquistados a cada ano, a tradução de 2004, no distrito, ainda não é nada boa: são 61 mortes por 100 mil habitantes. Embora já esteja bem longe do sinistro título mundial, o Jardim Ângela ainda é um local violento. Basta comparar seus números com os de um bairro da classe média alta paulistana como Moema, onde o índice de assassinatos é de 2 por 100 mil, e com os do Brasil, cujo índice fica em 27 por 100 mil.
Mesmo assim, a redução de 54% na taxa de homicídios, somada aos sinais de permanência da tendência de queda nos primeiros meses deste ano, é um notável aprendizado sobre segurança pública. É tão expressivo que ajuda a entender por que, em toda a cidade de São Paulo, segundo dados do IBGE e do Ministério da Saúde, a taxa de homicídios caiu quase 20% de 1999 a 2003.
Embora todos esses números tenham começado a surgir por causa de um padre, não existe nenhum milagre no Jardim Ângela. Trata-se de um padre entre cujos prazeres está o de misturar café com uísque, açúcar e chantilly -a célebre receita de café dos irlandeses.
Quando, em 1996, foram publicados os dados da ONU, o padre irlandês Jaime Crowe, cuja paróquia fica no Jardim Ângela, lançou um movimento contra a violência. "Em alguns meses, chegamos a ter mais de 50 mortes." Sua contabilidade não estava nos papéis. O cemitério era seu cenário habitual, onde rezava pelos mortos. "Num só fim de semana, tive de rezar por seis vítimas de homicídio."
Daquele movimento surgiu o Fórum de Defesa da Vida, projeto que reúne as principais entidades locais, a começar dos líderes das mais diversas religiões, dos evangélicos aos umbandistas. O ato inaugural foi uma passeata, no Dia de Finados, até o cemitério.
A paróquia dos Mártires, comandada pelo padre Jaime, centralizou a operação contra a violência. Logo viria a primeira conquista: a instalação de cinco bases de policiamento comunitário. Os policiais foram treinados, na paróquia, para entender os moradores do Jardim Ângela e se relacionarem com eles. "A população só conhecia policiais em movimento, a bordo dos velozes e eventuais furgões." Foram designados para lá policiais com talento para desenvolver ações preventivas. Com a quebra da lei do silêncio, as investigações levaram a prisões de matadores.
Viu-se, ali, o óbvio dos óbvios: o policiamento comunitário é o principal mecanismo de prevenção da violência. Embora a repressão reduza a sensação de impunidade, a policia, sozinha, não vai muito longe.
Desenvolveram-se programas para cuidar de crianças e jovens, oferecendo-lhes reforço escolar e cursos profissionalizantes. A Universidade Federal de São Paulo criou um centro para a prevenção e o tratamento do abuso de álcool e de drogas. "Sabíamos que o álcool é um dos principais combustíveis das brigas."
Buscou-se um acordo que envolvesse a polícia e o Ministério Público para que os bares fechassem mais cedo -vários deles aceitaram a idéia.
As escolas estaduais e municipais levaram os temas ligados à violência para dentro de sala de aula, tentando sensibilizar os alunos, muitos dos quais passaram a ir às passeatas de Finados.
Algumas praças foram reformadas, outras foram criadas; espaços abandonados ou pouco usados transformaram-se em áreas de lazer, esporte e cultura.
Nos últimos quatro anos, o Jardim Ângela tem sido atendido por programas de renda mínima da Prefeitura de São Paulo, compondo com recursos estaduais e federais. Tais recursos ajudaram a amenizar o desemprego, a encaminhar adultos ao mercado de trabalho depois de programas de capacitação e a desenvolver habilidades em jovens. Foram também liberados recursos para que pessoas pudessem montar seu próprio negócio.
Graças à sofisticação do aprendizado e do conhecimento acumulado sobre prevenção da violência, o que se montou ali foi não uma escola, mas uma universidade anticrime, para a qual o país precisa prestar vestibular.
PS - Como mostrou a pesquisa do Ipea na semana passada, temos pouco a comemorar. São mais de 53 milhões de pobres e muitos dos programas sociais não decolam, num crônico desperdício de recursos públicos. A baixa efetividade nesse campo é um dos fatores a explicar a queda, apontada hoje no Datafolha, do prestígio de Lula. O Jardim Ângela, assim como várias outras experiências brasileiras, ensina que, dentro e fora do governo, está surgindo uma notável vanguarda de lideranças sociais. É gente que, como o padre Jaime, gerencia bem os escassos recursos disponíveis. São essas pessoas e experiências que vão moldar as políticas públicas brasileiras. E aí vamos ver que, mesmo com pouco dinheiro, se fazem milagres.

E-mail - gdimen@uol.com.br

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