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GILBERTO DIMENSTEIN
Assassinato zero
Até o final da redação
desta coluna, na sexta-feira
à noite, o Jardim Ângela, um distrito na zona sul de São Paulo, tinha completado 45 dias sem um
só assassinato.
Um aglomerado de bairros com
300 mil habitantes, a maioria dos
quais vivendo abaixo ou pouco
acima da linha de pobreza, o distrito foi considerado pela Organização das Nações Unidas, em
1996, o local mais violento do planeta. Desbancou até mesmo Cali,
na Colômbia.
Desde aquele anúncio feito pela
ONU, a situação ficou ainda pior
no Jardim Ângela. Em 2001, o número de assassinatos bateu recorde: 277, segundo o registro de óbitos da prefeitura. A partir de então, o índice vem caindo ano a
ano e, em 2004, chegou a 151 assassinatos, uma redução de 54%.
O assassinato zero dos últimos 45
dias sugere a continuidade da
tendência de baixa.
Primeira conclusão: ninguém
tem o direito de dar opinião sobre
os meios de prevenir a violência
no Brasil sem estudar o fenômeno
Jardim Ângela.
Mesmo com o assassinato zero e
os avanços conquistados a cada
ano, a tradução de 2004, no distrito, ainda não é nada boa: são
61 mortes por 100 mil habitantes.
Embora já esteja bem longe do sinistro título mundial, o Jardim
Ângela ainda é um local violento.
Basta comparar seus números
com os de um bairro da classe média alta paulistana como Moema,
onde o índice de assassinatos é de
2 por 100 mil, e com os do Brasil,
cujo índice fica em 27 por 100 mil.
Mesmo assim, a redução de
54% na taxa de homicídios, somada aos sinais de permanência
da tendência de queda nos primeiros meses deste ano, é um notável aprendizado sobre segurança pública. É tão expressivo que
ajuda a entender por que, em toda a cidade de São Paulo, segundo dados do IBGE e do Ministério
da Saúde, a taxa de homicídios
caiu quase 20% de 1999 a 2003.
Embora todos esses números tenham começado a surgir por causa de um padre, não existe nenhum milagre no Jardim Ângela.
Trata-se de um padre entre cujos
prazeres está o de misturar café
com uísque, açúcar e chantilly
-a célebre receita de café dos irlandeses.
Quando, em 1996, foram publicados os dados da ONU, o padre
irlandês Jaime Crowe, cuja paróquia fica no Jardim Ângela, lançou um movimento contra a violência. "Em alguns meses, chegamos a ter mais de 50 mortes." Sua
contabilidade não estava nos papéis. O cemitério era seu cenário
habitual, onde rezava pelos mortos. "Num só fim de semana, tive
de rezar por seis vítimas de homicídio."
Daquele movimento surgiu o
Fórum de Defesa da Vida, projeto
que reúne as principais entidades
locais, a começar dos líderes das
mais diversas religiões, dos evangélicos aos umbandistas. O ato
inaugural foi uma passeata, no
Dia de Finados, até o cemitério.
A paróquia dos Mártires, comandada pelo padre Jaime, centralizou a operação contra a violência. Logo viria a primeira conquista: a instalação de cinco bases
de policiamento comunitário. Os
policiais foram treinados, na paróquia, para entender os moradores do Jardim Ângela e se relacionarem com eles. "A população só
conhecia policiais em movimento, a bordo dos velozes e eventuais
furgões." Foram designados para
lá policiais com talento para desenvolver ações preventivas. Com
a quebra da lei do silêncio, as investigações levaram a prisões de
matadores.
Viu-se, ali, o óbvio dos óbvios: o
policiamento comunitário é o
principal mecanismo de prevenção da violência. Embora a repressão reduza a sensação de impunidade, a policia, sozinha, não
vai muito longe.
Desenvolveram-se programas
para cuidar de crianças e jovens,
oferecendo-lhes reforço escolar e
cursos profissionalizantes. A Universidade Federal de São Paulo
criou um centro para a prevenção
e o tratamento do abuso de álcool
e de drogas. "Sabíamos que o álcool é um dos principais combustíveis das brigas."
Buscou-se um acordo que envolvesse a polícia e o Ministério
Público para que os bares fechassem mais cedo -vários deles
aceitaram a idéia.
As escolas estaduais e municipais levaram os temas ligados à
violência para dentro de sala de
aula, tentando sensibilizar os alunos, muitos dos quais passaram a
ir às passeatas de Finados.
Algumas praças foram reformadas, outras foram criadas; espaços abandonados ou pouco
usados transformaram-se em
áreas de lazer, esporte e cultura.
Nos últimos quatro anos, o Jardim Ângela tem sido atendido
por programas de renda mínima
da Prefeitura de São Paulo, compondo com recursos estaduais e
federais. Tais recursos ajudaram
a amenizar o desemprego, a encaminhar adultos ao mercado de
trabalho depois de programas de
capacitação e a desenvolver habilidades em jovens. Foram também liberados recursos para que
pessoas pudessem montar seu
próprio negócio.
Graças à sofisticação do aprendizado e do conhecimento acumulado sobre prevenção da violência, o que se montou ali foi não
uma escola, mas uma universidade anticrime, para a qual o país
precisa prestar vestibular.
PS - Como mostrou a pesquisa
do Ipea na semana passada, temos pouco a comemorar. São
mais de 53 milhões de pobres e
muitos dos programas sociais não
decolam, num crônico desperdício de recursos públicos. A baixa
efetividade nesse campo é um dos
fatores a explicar a queda, apontada hoje no Datafolha, do prestígio de Lula. O Jardim Ângela, assim como várias outras experiências brasileiras, ensina que, dentro e fora do governo, está surgindo uma notável vanguarda de lideranças sociais. É gente que, como o padre Jaime, gerencia bem
os escassos recursos disponíveis.
São essas pessoas e experiências
que vão moldar as políticas públicas brasileiras. E aí vamos ver
que, mesmo com pouco dinheiro,
se fazem milagres.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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