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PASQUALE CIPRO NETO
"Passageiro "surta" e obriga avião a pousar..."
Há uma "cizânia" ("surto" e "surtar" são cognatos, mas um é da linguagem técnica, enquanto o outro é giriesco)
ESTAVA NA FOLHA de terça-feira: "Passageiro "surta" e obriga
avião a pousar em Cumbica".
Por que as aspas em "surta"?
Quem lê só o título pode imaginar
que elas tenham sido empregadas só
porque "surtar" não freqüenta as variedades formais da língua, isto é,
porque é termo giriesco. De fato é (o
"Aurélio" e o "Houaiss" dizem que
seu uso constitui "brasileirismo", ou
seja, é típico do português brasileiro
-o "Aurélio" diz ainda que o termo é
típico da linguagem familiar).
Mas de onde teria vindo então o
largo emprego familiar ou giriesco
do verbo "surtar" com o sentido de
"apresentar, mais ou menos repentinamente, sintomas associados às
psicoses; ter um surto psicótico"
("Aurélio")? Do substantivo "surto",
que, diferentemente de "surtar",
ocorre na linguagem específica (da
psicanálise, de acordo com o
"Houaiss", que define o termo como
"crise psicótica caracterizada por
maior ou menor grau de desintegração da personalidade e incapacidade
de avaliar a realidade externa").
Mais do que comum, o processo
(acréscimo do sufixo "-ar" a um
substantivo) verificado com "surtar" nesse caso evidencia uma "cizânia" lingüística: um termo ("surtar",
no caso) que freqüenta as variedades não-formais da língua cognato
de outro ("surto", no caso) que encontra abrigo no padrão formal.
Acabamos de ver uma das possíveis razões para o emprego das aspas em "surta" no título jornalístico
citado no começo da coluna. Para
que fique claro: termos da gíria costumam ser postos entre aspas.
A outra razão (na verdade, uma
"co-razão") é o fato de que o caso
"morreu" ali, ou seja, não foi expedido nenhum laudo médico que atestasse que o passageiro em questão
de fato teve um surto. Moral da história: cautela e caldo de galinha não
fazem mal a ninguém... Entre afirmar categoricamente que o passageiro teve um surto (ou "surtou") e
apenas dizer que seu comportamento a bordo lembrou um surto, optou-se pela redação mais "prudente" (e
daí o emprego das aspas).
Cabe aproveitar o fato para lembrar um verbo que pode gerar dúvida em relação à sua flexão. Refiro-me a "sortir", que significa "abastecer", "prover", "variar", "combinar",
"misturar". A primeira pessoa do
singular do presente do indicativo
de "sortir" é "surto" ("Sempre surto
a loja com os produtos mais baratos"). E a de "surtar"? Também é
"surto" ("Surto com essas coisas").
Da segunda do singular em diante,
as flexões seguem caminhos distintos ("tu surtes, ele surte, nós surtimos...", de "sortir"; "tu surtas, ele
surta, nós surtamos...", de "surtar").
E o presente do subjuntivo? Bem,
aí basta lembrar que esse tempo se
forma a partir da primeira pessoa do
singular do presente do indicativo,
que, como já vimos, é "surto" para os
dois verbos. O "detalhe" é que "surtar" termina em "-ar", portanto seu
presente do subjuntivo é "que eu
surte, que tu surtes, que ele surte,
que nós surtemos..." ("Espero que tu
não surtes quando ele chegar aqui
com a tua ex-namorada"), enquanto
"sortir" termina em "-ir", portanto
seu presente do subjuntivo é "que eu
surta, que tu surtas, que ele surta..."
("Você quer eu que eu surta a loja
com produtos mais baratos?").
Por fim, não se pode esquecer que
também existe o verbo "surtir", que
significa "ter como conseqüência",
"produzir ou alcançar efeito". É isso.
inculta@uol.com.br
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