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Final feliz na caserna
Dois anos após mobilizarem a Polícia do Exército por assumirem homossexualismo, De Araújo e Alcântara vivem tranquilos na Vila Militar
LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA
Eles são celebridades. São
gays. Um é sargento do Exército da ativa. O outro, licenciado -pediu baixa. Dois
anos após o escândalo que
foi a saída deles do armário,
Laci Marinho de Araújo, 37, e
Fernando Alcântara de Figueiredo, 36, vivem felizes e
tranquilos. São a primeira família abertamente homoerótica do Exército brasileiro.
Com a farda de passeio impecavelmente passada, o 2º
sargento De Araújo recebeu a
Folha às 7h de uma quarta.
Preparava-se para mais um
dia de serviço no hospital militar de Brasília.
Ao lado do homem fardado, como se repete há 13
anos, estava o companheiro,
sargento licenciado Alcântara, que ultimava o café da
manhã. Vestia camiseta regata justa, músculos à mostra. Logo, ele também sairia,
rumo a uma passeata gay.
Os dois vivem em um apartamento funcional do Exército, no valorizado plano-piloto de Brasília. Não pagam
aluguel -só condomínio.
No dia 3 de junho de 2008,
De Araújo e Alcântara concediam entrevista à apresentadora Luciana Gimenez, na
sede da RedeTV! em São Paulo, quando câmeras colocadas do lado de fora dos estúdios mostraram o cerco ao
prédio da emissora, feito por
soldados armados com fuzis.
Trilha sonora de terror ao
fundo, Gimenez exclamava
nunca ter visto nada igual: a
Polícia do Exército esgueirava-se pelas instalações da
RedeTV! como se caçasse Bin
Laden. Ibope nas alturas.
"Eles querem me matar";
"Vou me suicidar para não ir
preso". Em close, o rosto do
sargento De Araújo era só desespero, lágrimas e súplicas.
Poucos dias antes, os dois
sargentos (Alcântara ainda
era da ativa) tinham sido tema de capa da revista "Época", apresentados como "o
primeiro casal de militares
brasileiros a assumir sua homossexualidade".
Segundo o ministro da Defesa, Nelson Jobim, não era
discriminação contra homossexuais a prisão ao vivo e
em rede nacional. "É uma
questão disciplinar. A informação é que esse cidadão
[De Araújo] era um desertor e
foi preso como tal", disse.
Pelas regras da caserna, o
"sumiço" injustificado de um
militar durante oito ou mais
dias caracteriza deserção.
Segundo De Araújo, as ausências do serviço, que ele
admite, decorreram de um
quadro de depressão, tonturas, dores de cabeça e visão
turva, que o impediam até
mesmo de se sentar à mesa
para almoçar ou jantar.
De Araújo tinha de permanecer deitado todo o tempo.
Era Alcântara quem lhe dava
comida na boca.
Hoje, sabe-se a causa do
transtorno. De Araújo, que já
fez shows como cover da cantora Cássia Eller, tem epilepsia dos lobos temporais esquerdo e direito. Toma remédios que controlam os sintomas e leva vida normal.
"Normal, bem normal",
concorda a síndica do prédio
em que o casal vive. "Eles
não são de baladas. Nunca
foram", diz a responsável pela boa ordem no condomínio
habitado por 49 famílias de
militares (inclui-se a do sargento De Araújo) e 11 de civis.
Foi por essa "normalidade" que os vizinhos não entenderam nada quando
agentes da inteligência do
Exército, fingindo-se civis,
começaram a cercar o prédio
-tentavam obter informações sobre o modo de vida
dos dois militares gays.
Em uma operação militar
que envolveu algo entre dez e
15 homens armados, o apartamento foi invadido. O propósito era prender De Araújo.
"Com um estrondo, os militares estouraram a porta do
apartamento. Entraram quebrando tudo", lembra uma
vizinha, mulher de militar,
que preferiu não se identificar: "Não precisava. Eles não
são bandidos. Vários moradores ficaram indignados".
A operação era para prender De Araújo, que estava na
casa de um amigo, já que não
podia ficar sozinho no apartamento quando o companheiro saía para trabalhar.
Segundo Alcântara, "Laci,
fraco e doente, estava sendo
perseguido pela hierarquia
do Exército. Ele não tinha a
menor condição de se apresentar. Os laudos de médicos
particulares atestavam isso".
Para os médicos do Exército, o sargento estava em boas
condições de saúde.
Dois anos depois, o apartamento deixado semi-destruído pela Polícia do Exército foi
reformado pela Prefeitura
Militar de Brasília e se manteve como moradia oficial do
sargento De Araújo, que o divide com Alcântara (cada um
dorme em um quarto).
De Araújo não esconde
seus modos delicados ao entrar no hospital do Exército,
na Vila Militar, a que se chama de Forte Apache.
A divisa do Exército, "Braço Forte, Mão Amiga", referência inequívoca a músculos e masculinidade, não impede os soldados fortões da
entrada do hospital de prestar continência para o sargento gay. Como aconteceria
com qualquer sargento.
No prédio militar, muitos
companheiros de farda explicitam a camaradagem -tapinhas nas costas, abraços. De
Araújo é um dos responsáveis pelo departamento de
recursos humanos do hospital militar. O comandante do
setor é só elogios. "Aqui, ninguém está interessado em
com quem ele vive, mora ou
se relaciona afetivamente.
Basta-nos saber que ele desempenha seu papel com denodo e honradez. E ele o faz."
A Folha questionou o
Exército sobre o procedimento-padrão adotado quando
um soldado se revela homossexual. A resposta: "O Exército cumpre rigorosamente os
instrumentos legais, agindo
com impessoalidade e observando os direitos estabelecidos na Constituição Federal,
sem discriminação".
Alcântara pediu baixa para poder falar sobre a condição homossexual nas Forças
Armadas. "Se não saísse, cada entrevista acarretaria uma
prisão." Fundou a ONG Abrigo do Ser, que pretende ajudar vítimas de homofobia.
No dia 19 de maio, participou de uma marcha pelos direitos dos homossexuais em
Brasília. Não discursou, não
se apresentou. Mas foi reconhecido por centenas de participantes, que pediam para
ser fotografados ao seu lado.
A bordo de um vaporoso
vestido azul, a cantora e atriz
Jane di Castro, nascida Luiz
de Castro, mal acabara de
cantar o Hino Nacional, no
encerramento da marcha,
quando divisou a figura de
Alcântara. Correu até ele só
para dizer: "Vocês são meus
heróis". O ex-militar sorriu-lhe, tímido: "Não deixa de
ser um happy end, não é?".
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