São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2007

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TRAGÉDIA EM CONGONHAS/CAUSAS - ENTREVISTA PETER LADKIN E KENNETH FUNK 2º

Acidentes não têm causa única, dizem especialistas

Peter Ladkin refuta a hipótese de que a posição errada do manete pode ter provocado algum erro nos comandos automatizados

DA REPORTAGEM LOCAL

Os investigadores de causas de desastres aéreos Peter Ladkin e Kenneth Funk 2º são unânimes em afirmar que não existe acidente de uma causa só.
Ladkin, porém, é incisivo sobre o eventual erro cometido pelos pilotos ao não colocarem o manete na posição de ponto morto: "Reduzir o manete para o ponto morto é um conhecimento básico para qualquer pessoa de aviação -e isso não é só com o Airbus ou o Boeing, mas até mesmo com um Cessna de dois ou quatro lugares".
Especialista em acidentes que tenham alguma relação com o sistema de computação da aeronave, Ladkin refuta a hipótese de que a posição errada do manete pode ter provocado algum erro nos comandos automatizados. "O sistema faz o que o piloto determina", diz.
Leia a entrevista com os pesquisadores, feita por e-mail e telefone, entre quinta e anteontem. (MARIO CESAR CARVALHO)  

FOLHA - De acordo com dados da caixa-preta do Airbus acidentado, um dos manetes do avião estava na posição errada quando ele pousou, aumentando a velocidade em vez de reduzi-la. É possível dizer que o acidente ocorreu por uma falha do comandante?
KENNETH FUNK
- É possível, sim. O National Transportation Safety Board dos EUA (Comitê Nacional de Segurança em Transporte) atribui de 60% a 70% dos acidentes com aviões parcialmente a erros da equipe. Entretanto, nenhum acidente resulta de uma só causa. Pilotos são humanos e humanos cometem erros o tempo todo. Equipamentos bem projetados e sistemas de alerta ao piloto mitigam e compensam a grande maioria dos erros que ocorrem. Mas, às vezes, uma confluência de eventos e condições, como mau tempo, pista molhada, condições do equipamento, manutenção inadequada e falhas de projeto podem contribuir para o desastre. Meu palpite é que, com esse acidente, não foi diferente. Provavelmente, uma série de fatores contribuiu para o acidente.
PETER LADKIN - O manual de operações é muito claro de que os dois manetes devem estar na posição de ponto morto quando o avião está prestes a tocar o solo. O manual é muito claro também de que os spoilers não serão acionados a não ser que os dois manetes estejam na posição de ponto morto. Reduzir o manete para o ponto morto é um conhecimento básico para qualquer pessoa de aviação -e isso não é só com o Airbus ou o Boeing, mas até mesmo com um Cessna de dois ou quatro lugares.

FOLHA - O sr. tem notícias de algum acidente com o A320 em que um manete estava na posição errada quando ele posou?
LADKIN
- Há um acidente com a família de aviões Airbus-A320 no qual o manete não foi reduzido para ponto morto. Esse acidente ocorreu com um Transasia Airways A320 no aeroporto de Taipei (Taiwan), em outubro de 2004. Ninguém se feriu e a aeronave foi reparada e, acredito, ainda está voando. O piloto estava aterrissando e deixou o manete num ângulo de 22,5 graus, o que estava fora do ponto morto. Os spoilers não se armam nessa situação. Eles são superfícies na asa que se armam durante a frenagem para que o avião receba o máximo de peso nas rodas e pare. Há uma pergunta óbvia: por que o piloto não reduziu os dois manetes na aterrissagem no caso da Transasia? Infelizmente, na minha opinião, essa pergunta não foi respondida adequadamente na investigação, que foi bastante ampla. FUNK - Não.

FOLHA - A posição errada do manete pode ter como origem um problema no sistema de computação do avião?
FUNK
- Não conheço o suficiente o avião para responder.
LADKIN - Pelo que eu conheço, nunca foi registrado um incidente no qual o sistema de computação tenha registrado uma posição errada do manete.

FOLHA - O sr. acha plausível a hipótese de que a posição incorreta do manete enganou o sistema de computação? O computador pode ter interpretado que o piloto tentava arremeter e desarmou os spoilers?
LADKIN
- No A320, se um manete não for colocado em ponto morto no momento em que o avião toca o solo, o sistema de autopropulsão desliga-se automaticamente e as turbinas vão fazer o que foi indicado pelo manete. Os spoilers não vão se armar. Isso está claríssimo no manual de operações. Não há como "enganar" o sistema de computação nesse caso. O sistema faz o que o piloto havia determinado. Se o piloto não colocou o manete no ponto morto ao aterrissar, ele (ou ela) não terá isso.
FUNK - Eu ouvi falar, apesar de ninguém confirmar, que o A320 tinha uma característica como essa. A informação surgiu durante a investigação do acidente do vôo 965 da American Airlines perto de Cali, na Colômbia, em dezembro de 1995. Ali, a equipe iniciou uma rápida descida com os spoilers acionados, mas o avião ficou desorientado e embicou na direção de uma área montanhosa. Quando a equipe percebeu isso, ela acionou a potência total para subir, mas esqueceu de recolher os spoilers. Os pilotos não conseguiram escapar das montanhas e o impacto destruiu o avião e matou 163 passageiros e tripulantes. O que foi dito após esse acidente é que, se fosse um A320, a potência total faria com que os spoilers fossem recolhidos e eles poderiam ter escapado das montanhas.

FOLHA - A gravação das vozes dos pilotos mostra que eles tinham consciência de que só um reversor funcionava. É possível imaginar que o reversor pode ter alguma influência na tragédia?
FUNK
- Sim, é possível imaginar esse cenário. Para mim, parece que o impulso assimétrico do reversor provocou uma guinada no avião que seria difícil, mas não impossível, de corrigir.
LADKIN - Os pilotos foram alertados de que somente um reversor estava funcionando assim que eles pegaram o avião naquele dia de manhã. E eles fizeram uma aterrissagem em Porto Alegre com o avião. O reverso foi desabilitado pelo pessoal de manutenção dias antes e esse fato era conhecido pelos pilotos. Toda essa situação não é incomum; é rotina. O reversor não é essencial para frear um avião na aterrissagem. As tabelas de frenagem dos manuais dos aviões são calculadas sem levar em conta o reversor. Em condições normais, o reversor responde por 10% do freio, ele só é importante quando há ventos fortes. O poder de freagem está no freio de rodas -90% numa pista seca e com aderência. E há os spoilers. Eles "transferem" a maior parte do peso das asas, garantindo que as rodas recebam o peso suficiente para que o freio funcione. Você precisa ter certeza de que os spoilers estão ativados.

FOLHA - Por que uma série de investigações de acidentes começa atribuindo a culpa ao piloto e, três ou quatro anos depois, surgem evidências de que os computadores podem ter influenciado no desastre?
FUNK
- As pessoas gostam de explicações simples. O piloto de um avião acidentado freqüentemente morre no desastre e às vezes não há ninguém para defendê-lo. Também é bastante óbvio que o piloto fez a última ação que resultou no acidente. A "satisfação" desse tipo de descoberta refreia a busca de outros fatores que contribuíram para a ação. Esses fatores só se tornam aparentes com o tempo, após pesquisas profundas e persistentes.
LADKIN - Após um acidente em Varsóvia com um A320, em 1993, foram modificados o sistema de freios e os spoilers, de forma que esse tipo de incidente nunca mais aconteceu. Em Varsóvia não havia área de escape e o avião incendiou-se -só duas pessoas morreram. Se há alguma coisa para o avião bater no final da pista, é óbvio que isso vai acabar em tragédia. Por essa razão, onde for possível, os principais aeroportos devem ter áreas de escape com materiais projetados com sistemas de agarre ou concreto rugoso. Infelizmente, em muitos aeroportos de grandes cidades, como o de Congonhas, isso não é possível porque há prédios e ruas em volta do aeroporto. Mas se esses obstáculos estão lá, e as operações continuarem como são hoje, alguém vai bater nesses obstáculos alguma hora. Os aviões vão continuar a sair da pista por várias razões, como acontece todo ano ao redor do mundo. Isso aconteceu em Toronto, em Chicago, em Burbank [Califórnia]. A pergunta óbvia é: o que vocês vão fazer? Culpar os suspeitos de sempre -equipe, sistemas computadorizados, controle do tráfico aéreo- não muda a situação.

FOLHA - O sistema de automação do A320 é seguro?
LADKIN
- Suponha que "seguro" signifique que não houve passageiros ou tripulantes feridos. A família A320 sofreu apenas sete acidentes nos quais passageiros ou tripulantes saíram feridos em 19 anos. Foram cerca de 50 milhões de vôos. Acho que cerca de 49.999.989 vôos seguros num total de 50 milhões é uma boa marca.
FUNK - Segundo a publicação da Boeing chamada "Summary of Commercial Jet Airplane Accidents, Worldwide Operations 1959-2005", a família A320 (A319/320/321), que tem basicamente o mesmo sistema de controle aéreo, tem uma taxa de 0,57 acidentes graves por 1 milhão de decolagens. A média mundial é de 1,68 acidentes graves por 1 milhão de decolagens, o que dá ao A320 um histórico de boa segurança. Há o problema do aeroporto. Como aviões saem da pista com uma certa freqüência, acidentes como o que ocorreu em São Paulo podem acontecer novamente, mesmo que mudanças sejam feitas na pista. Acho que o sistema de aviação não estará livre de riscos durante minha vida.


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