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São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003

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SP 450

O médico e ex-professor da USP lembra seu passado no bairro da Liberdade e refaz trajetos sentimentais pela cidade de São Paulo

Entre gueixas, futebol e medicina

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

O adolescente Vicente Amato Neto fazia questão de espalhar seus livros de biologia e suas anotações no quintal da casa onde a família morava, na rua Santa Luzia, número 23. A mãe, dona Aída, nunca soube por que o filho gostava de fazer ali sua lições.
Vicente sabia muito bem. No meio das manhãs, quando a mãe se ocupava com o almoço, ele arrastava um banco para junto do muro, subia na ponta dos pés e tinha a "visão do paraíso": gueixas nuas tomando banho em tonéis fumegantes, fazendo gracinhas incompreensíveis, sem ligar para o topete daquele moleque espiando sobre o muro.

A rua Santa Luzia é uma travessa da Conselheiro Furtado, que nasce na praça João Mendes, bem atrás do Tribunal de Justiça, e desce em direção à Liberdade. Vicente Amato Neto, que já foi secretário da Saúde do Estado (1992), superintendente do Hospital das Clínicas (87 a 92), professor titular da Faculdade de Medicina da USP, continua uma autoridade em infectologia do país. Hoje tem seu consultório nos Jardins, não muito distante do trecho da alameda Casa Branca, onde mora confortavelmente.
Quando se casou com Miryan Sabbaga, Amato se mudou para uma casa modesta na rua Arruda Alvin, bem próximo ao Hospital das Clínicas. O HC, aliás, virou sua segunda casa desde que ingressou como aluno, em 1944. Até hoje, ele passa as manhãs no Instituto de Medicina Tropical, nos fundos da faculdade e na mesma rua do HC.
Para os lados da Conselheiro Furtado, o professor Amato nunca mais tinha voltado. Nem queria voltar. "Sei que aquilo mudou muito e não quero apagar imagens que tenho registradas."
Combinamos então que ele relataria os cenários que guardava e o repórter descreveria os cenários que encontrasse. No dia da entrevista, o professor ainda estava dividido. Até que se decidiu: "Toca para a Conselheiro".

Para quem está no HC, o caminho mais interessante é descer a Consolação, atravessar o viaduto do Chá, passar diante da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, contornar a praça da Sé, tomar à esquerda e seguir em direção à Conselheiro Furtado.
""Aquela igreja ali, recém-pintada de amarelo, é a de São Gonçalo. Eu fiz ali a primeira comunhão."
A igreja fica à direita do que hoje se chama praça João Mendes, onde está instalado o grande prédio do Fórum central.
"Aqui nesse meio passava a rua Anita Garibaldi, que desapareceu junto com a igreja dos Remédios. Ali, em volta do prédio do tribunal, tinha um fosso espaçoso e iluminado. Era maravilhoso, nós podíamos jogar bola à noite."
A Conselheiro Furtado, que começa logo em frente, era o cenário que o professor não queria ver. "Ali no número 47 ficava a alfaiataria do meu pai, e, nos fundos, tinha uma escada que dava para a vila, onde passei minha infância."

No local, só há um grande buraco transformado em estacionamento. Seguimos a pé até o número 17 da Conde de Sarzedas, antiga entrada da vila que tinha o mesmo nome. Foi ali que Amato passou boa parte da infância e da adolescência, num período em que os imigrantes japoneses estavam presentes em todo o bairro.
A vila é hoje um estacionamento que abriga parte da frota oficial e dos funcionários do 2º Tribunal de Alçada Cível. As dezenas de casas da vila foram derrubadas no início dos anos 90. Uma placa, num dos cantos do estacionamento, anuncia a pedra fundamental para a construção ali do novo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A placa é de 1994, gestão do governador Luiz Antônio Fleury. O prédio até hoje não foi construído.
O professor Amato, na elegância de seu terno e de seus sapatos de couro claro, anda pelo estacionamento adentro sem que os funcionários ousem perguntar quem é aquele senhor. Ele caminha buscando no que restou dos fundos das casas, nos barracos, alguma coisa que lembre sua vila.
"Nesse miolo ficava um conjunto de casas, depois outras fileiras se espalhavam até lá ao fundo", ele vai dizendo. "Em algum lugar, nesse ponto -ele diz apontando o barranco-, subia a escada que levava da vila para a alfaiataria de meu pai, o seu Arturo. Era um excelente alfaiate, mas só pensava no seu Palestra Itália. Para ele, a vida era o Palestra Itália."

Lá ao longe, à esquerda, se vê o fundo da Igreja de Santa Luzia, que dá frente para a rua Tabatinguera, conhecida como a igreja dos franceses. "Ali eu fui coroinha mercenário", ele diz brincando. "Pagavam por missa. As de vermelho, mais solene, rendiam mais que as outras."
O professor prossegue pela Sarzedas tentando reconhecer as construções. Lá embaixo, em algum lugar, estava a casa onde ele nasceu em 24 de julho de 1927.
A Conde de Sarzedas é hoje uma espécie de Santa Ifigênia dos evangélicos. Vem gente do Estado inteiro comprar CDs, vídeos, bíblias, terços, gravações, no "Recanto dos Evangélicos", na "Livraria Evangélica", na "A Casa do Pregador".
O professor não reconhece a casa onde nasceu. "Ficava por aqui", ele aponta, entre os números 308 e 320 da rua. Não há nada que identifique uma residência, apenas imóveis que foram reconstruídos e misturam habitações com comércios. Descendo mais uns 200 metros, a rua termina no que foi a entrada das várzeas do Carmo ou do Glicério. "Tinha mais de 40 campos, nada de grama nem de rede. Jogava quem chegava primeiro."
Hoje, o trecho que dava entrada para a várzea do Glicério é uma área perigosa à noite. O tráfico já fechou as lojas mais de uma vez, mas durante o dia ninguém perturba o comércio evangélico.
Depois dos baixios da Sarzedas, a família se mudou para a vila na esquina da Conselheiro, depois para o número 23 da rua Santa Luzia, uma travessa abaixo.
Logo abaixo da vila, na Sarzedas, ainda está o castelinho, uma construção tão extravagante quanto misteriosa, hoje em reforma. "Para nós, meninos, todo castelo era assombrado. Nunca tive coragem de entrar lá."
O professor nem sabe que o castelo tem versões que misturam antigos descendentes que tiveram poder na cidade e até amantes que se envolveram com a marquesa de Santos. A história termina com um familiar apaixonado, o advogado Luiz Rodrigues de Ferreira, que construiu um castelo para sua amada francesa de 18 anos.
Diz-se que o castelinho da Sarzedas foi concluído entre 1880 e 1890 e que a noiva, Marie Luise Delanger, chorou de decepção ao descobrir que o castelo só tinha luzes de vela e não dispunha de banheiros nos cômodos superiores.

Para o menino Vicente Amato, o castelo era apenas um local assustador, que abrigava sociedades marianas e qualquer outra que pudesse pagar o aluguel.
O bairro, nesses anos 30 e 40, vivia sua fase mais oriental. A partir da primeira década do século 20, os japoneses que chegavam a São Paulo, em situação de completa penúria, procuravam os locais baratos e próximos ao centro. A ladeira íngreme da rua Conde de Sarzedas, que terminava numa área de alagados, oferecia porões e garagens a preços muito baixos. Imigrantes japoneses se instalaram ali, iniciando um comércio voltado à própria comunidade. A primeira fábrica de tofu (queijo de soja), doces japoneses, as primeiras pensões, escolas e pontos de encontro da comunidade foram nascendo nessa região. A Conde de Sarzedas virou a "rua dos japoneses".
O menino Vicente fazia parte do Mikado Futebol Club, um time em homenagem ao império do Japão. "As reuniões eram na casa do sapateiro Luizinho, que não acendia as luzes para economizar. Eu fazia as atas no escuro."
Quando começou a Segunda Guerra, e especialmente depois do ataque japonês no Pacífico, em 1942, o Brasil rompeu relações com o governo japonês e os moradores daquela região passaram a viver clandestinamente.
"Mudamos o nome do time para Sarzedas FC, mas os colegas japoneses tiveram de fugir."
Estima-se que na época 600 japoneses moravam na Conde de Sarzedas, e centenas de outros nas vizinhanças. Com o final da guerra, a comunidade foi se restabelecendo e aos poucos se juntando no que é hoje a Liberdade.

Da Santa Luzia, travessa da Conselheiro Furtado, havia duas opções para chegar à Faculdade de Medicina, na Dr. Arnaldo. Uma era pegar o elétrico Avenida ou o ônibus Avenida, na praça João Mendes. Subiam pela Brigadeiro Luiz Antônio e seguiam pela Paulista.
O professor saltava na esquina da Consolação e caminhava a pé até a faculdade, na Dr. Arnaldo. A outra opção era caminhar até a praça Ramos, onde fica o Teatro Municipal, subindo a Conselheiro Furtado, seguindo pela Riachuelo, a praça do Patriarca, o viaduto do Chá, até o ponto de onde saía o bonde Dr. Arnaldo. "Aí era só descer em frente ao cemitério e atravessar a rua."

"Pouco mudou nesse caminho. A igreja da Sé -que eu vi em construção-, as ruas do centro, o viaduto do Chá, o prédio da Light, o Municipal..., tudo está igual, apenas mais abandonado."
Na sua sala modesta, no Departamento de Parasitologia, primeiro andar do prédio de mau gosto do Instituto de Medicina Tropical, o professor Amato Neto costuma primeiro apresentar seus "amigos". E não são os colegas de laboratório debruçados sobre microscópios. Numa sala ao lado, ele abre uma estufa onde estão cerca de 800 Tripanosomas cruzis, o bicho barbeiro, alguns para nascer, muitos já adultos.
É com esses animais, não infectados, que a equipe do professor pode saber se tal paciente está ou não com com a doença.
Antes mesmo de iniciar a faculdade, o professor Amato já era um apaixonado pelas doenças infecto-contagiosas. Toxoplasmose, doença de Chagas, esquistossomose, parasitas intestinais. "São doenças de pobres, que não interessam aos laboratórios."
Com a epidemia de Aids, o professor se tornou um personagem de presença constante na mídia.
Quando foi superintendente do Hospital das Clínicas, de 1987 a 1992, o professor "enfrentou" os camelôs que atulhavam as calçadas do HC, construindo 36 quiosques coloridos.

"Logo uns venderam para os outros e a rua foi invadida por estranhos."
Também estranhou a política, e ficou menos de um ano à frente da Secretaria de Estado da Saúde. Não foi um período que lhe traz saudades. Como ele diz, sua lógica e fantasia de pesquisador e professor não combinavam com o perfil de um político.
Quem acompanha o professor nas suas caminhadas pela Faculdade de Medicina e pelo Hospital das Clínicas, vê nele um outro personagem.
Professores e alunos, para cumprimentá-lo, fazem questão de apertar sua mão e sempre fazem referência a algum trabalho que publicou a alguma aula que deu.

As homenagens acontecem tanto nos salões nobres da Faculdade de Medicina, no Instituto Central, onde se encastelam os professores titulares, quanto nos espaços reservados aos estudantes, o Centro Acadêmico recentemente reformado depois de um incêndio. Jovens estudantes e professores barbados o abraçam com carinho.
Mas as homenagens mais efusivas aparecem na Atlética, a área de esportes dos estudantes da Faculdade de Medicina que o professor frequenta desde 1944, quando entrou para a escola.
Começou ali, ainda estudante, jogando no "Peito Nu", time que tinha esse nome por jogar sem camisa. "Não tenho mais forças para correr atrás da bola, mas sou eu que organizo as partidas."
Embora não seja escalado para os dois tempos, ele ainda dá seus chutes, sempre como meia-direita, a mesma posição que ocupava no Mikado Futebol Clube da Sarzedas.

Visite o site dos 450 anos de São Paulo na
www.folha.com.br/especial/2003/saopaulo450

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