São Paulo, quinta-feira, 05 de outubro de 2006

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PASQUALE CIPRO NETO

"O senhor tem que apertar o botão"


O fato é que a maneira de perguntar e a de responder podem, por si sós, revelar mais do que se imagina


O LEITOR TALVEZ JÁ tenha ouvido algumas histórias em que se fala da suposta lógica estrita dos nossos irmãos lusitanos. Para José Simão, os portugueses são básicos. De acordo com a lenda, quando se lhes pergunta, por exemplo, algo como "O senhor sabe onde fica a farmácia mais próxima?", pode-se receber como resposta um seco "Sei", sem os detalhes ("Fica em tal lugar"). A coisa morreria no básico, ou seja, na resposta estrita ao que se perguntou ("O senhor sabe...?).
Cá entre nós, entre ser básico e não responder ao que se pergunta ou dar como "resposta" algo que contenha afirmações implícitas sobre o indagador, fico com a primeira.
O fato é que o modo de perguntar e o de responder podem, por si sós, revelar muita coisa. Veja só. Dia desses, estava eu a caminho do aeroporto de Congonhas. Depois de usar a sórdida passarela, apertei o botão que gerencia o semáforo de pedestres. Nada de ficar vermelho para os automóveis. No outro lado da calçada, dois agentes da Companhia de Engenharia de Tráfego conversavam. Acenei para eles. Nada. Os dois continuavam a conversar. Desisti do semáforo e, depois de arriscar a pele, cheguei ao outro lado da rua.
Movido pelo incorrigível desejo de ser útil (lembrei-me do memorável poema "O Haver", de Vinicius de Moraes: "Resta [...] esse ridículo desejo de ser útil / e essa coragem para comprometer-se sem necessidade"), fui aos agentes da CET e disse-lhes que o semáforo não funcionava.
De bate-pronto, um deles me disse: "O senhor tem que apertar o botão." Que pode haver por trás desse tipo de "resposta"? Além do endeusamento da máquina e a conseqüente idéia de que quem falha é sempre o homem, a pressuposição de que o indagador é um jeca. Note que o agente nem perguntou se eu apertara o botão (o que já seria como colar em mim um selo de desinformado).
Não é por acaso que muita gente vai mal nas provas de compreensão de texto. O pior dos crimes é responder de acordo com o senso comum e não com o que está no texto, responder ao que não se perguntou etc. Alguns vestibulares apresentam aos candidatos um trecho (pergunta e resposta) de uma entrevista publicada por jornal ou revista. Em seguida, perguntam ao candidato se o entrevistado de fato respondeu à pergunta, se há contradição etc.
Veja este exemplo, da Unicamp-93 (o entrevistado é ACM, então governador da Bahia): "Pergunta: O senhor fala em respeito à Constituição. Não é contraditório, então, colocar a não-posse do vice Itamar em caso de impeachment?"; "Resposta: Você não acha que um impeachment imposto não é rasgar a Constituição?". As questões eram estas: "a) Qual o sentido literal da fala de ACM?; b) Reescreva a fala de ACM de forma a eliminar o eventual mal-entendido; c) A forma da pergunta pode ter influenciado a forma da resposta. Qual a característica formal que torna a resposta de ACM semelhante à pergunta do repórter?".
Há um "não" a mais na resposta de ACM, o que faz sua fala equivaler a "um impeachment imposto não é rasgar a Constituição", ou seja, o oposto do que queria dizer. O item "c" da questão se refere à presença dupla do "não" na pergunta ("Não é contraditório, então, colocar a não-posse..."), fato que pode ter influenciado a forma da resposta. É isso.

inculta@uol.com.br


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