São Paulo, segunda-feira, 05 de outubro de 2009

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MOACYR SCLIAR

Nu, na luta de classes


Se pudesse, consultaria Marx a respeito. Mas na época dele a luta de classes não incluía calendário com nu artístico


 

Operários franceses posam nus em calendário para salvar emprego. Trabalhadores de uma fábrica de caldeiras na França tiraram a roupa e posaram nus para um calendário em uma tentativa de salvar 204 empregos em meio à crise. A direção da empresa pretende encerrar as operações. "Nosso objetivo é mostrar que há trabalhadores aqui que fazem qualquer coisa para salvar seus empregos, mesmo tirar a roupa", disse Brigitte Coadic, representante sindical e responsável pelo calendário. A ideia é só a mais recente de uma série de protestos na França: já houve sequestro de chefes, ameaças de atentados contra fábricas. Mas Coadic insiste que a ação é completamente pacífica. "Não queremos destruir nada", disse. "Queremos mostrar o que podemos fazer, queremos dizer à gerência que, se eles nos mantiverem, podemos transformar essa atenção da mídia em algo positivo." Folha Online

COMO outros empregados da empresa, ele estava revoltado com a possibilidade de ser despedido. Mas, diferentemente de outros empregados, não lhe agradava a ideia de fazer um protesto posando nu. "Marx nunca mencionou uma coisa dessas na luta de classes", argumentava.
A organizadora do calendário contudo, insistia: ele era uma figura indispensável. Não por causa de sua militância sindical, mas por ser um homem alto, bonito, musculoso: sua presença no calendário se constituiria numa atração à parte. Relutante embora, ele acabou concordando. E disso resultou algo totalmente inesperado.
O calendário ficou pronto, teve algum sucesso e, dias depois, ele recebeu um telefonema. Era uma mulher que se identificava como ninguém menos que a dona da empresa para a qual ele trabalhava. A princípio pensou que fosse um trote e ia desligar, irritado. Mas ela insistiu, fornecendo detalhes sobre sua ficha profissional que confirmavam: sim ela só podia ser a proprietária da fábrica. E aí confessou: ficara impressionada com a foto do rapaz no calendário: "Eu jamais podia imaginar que tinha um empregado tão bonito." Convidou-o para jantar.
Foi assim que tudo começou. A proprietária da empresa era uma mulher de 40 e poucos anos, muito bonita; recentemente enviuvara e se sentia muito só. Ao ver a foto instantaneamente se apaixonara, aquela coisa de amor à primeira vista.
Ele era solteiro, não tinha namorada, e a verdade é que aquela mulher o fascinava. Ao primeiro encontro outros se sucederam, sempre na mansão em que ela morava sozinha. Inevitavelmente se tornaram amantes. E inevitavelmente ele lhe pediu que ela mantivesse a fábrica funcionando. Mas, como ela mostrou na ponta do lápis (o lápis sendo um óbvio símbolo fálico) a empresa simplesmente se tornara inviável. Bem que ela gostaria de manter um empreendimento familiar; isso, porém, era impossível.
Com o que ele se vê diante de um dilema. De um lado, quer viver ao lado da mulher a quem ama. De outro, continua solidário com seus companheiros. Se pudesse, consultaria Karl Marx a respeito. Mas na época de Marx a luta de classes não incluía calendários com nus artísticos.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.

moacyr.scliar@uol.com.br


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