São Paulo, sexta-feira, 05 de novembro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

BARBARA GANCIA

Bandeira quadriculada


Sentar no banco do passageiro de carro conduzido pelo Piero não era a melhor sensação


DIZEM QUE ELA não existe, mas, neste caso, a coincidência é tão marcante que parece ter sido ação de marketing bem bolada pela equipe que levou uma tecnocrata desbotada à superstar do Planalto.
A missa de sétimo dia do meu pai, Piero Gancia, o homem que trouxe a F-1 de volta a São Paulo, será realizada no dia seguinte ao Grande Prêmio do Brasil, na próxima segunda-feira, dia 8.
Durante muitos anos, esta foi a semana mais movimentada do ano para ele. Começava com o Salão do Automóvel, ao qual ele comparecia ora nas vestes de piloto, ora nas de expositor ou dirigente esportivo- dependendo da época de sua vida de que estivermos falando.
Além da frenética atividade no GP (desentope calha na última hora, rebaixa zebra, acerta ondulação que garantiram não ia estar ali, contém a politicagem, sossega o Bernie, ajuda o Tamas... cadê o carro pipa que deveria estar na reta dos boxes?), havia uma miríade de eventos e jantares em torno do evento.
Luca di Montezemolo, presidente da Ferrari, que enviou e-mail carinhoso anteontem, sempre aproveitava a passagem pela cidade para jantar lá em casa. Jackie Stewart, François Cevert, Niki Lauda, Moco, Rato, Nelson... eram tantos pódios ao redor da mesa que eu nunca sabia direito para que lado virar para pedir autógrafo.
Os vizinhos iam chegando, estacionando a bicicleta e sentando na calçada na frente do nosso portão esperando a gente terminar de jantar. E a todos os amiguinhos meu pai levava dar uma volta na pista no seu Alfa Romeo.
Programa que eu, confesso, não achava a menor graça embora me considere filhíssima de peixe. Sentar no banco do passageiro de carro conduzido pelo Piero, enquanto ele fazia as curvas um e dois de Interlagos de pé embaixo, e sentir todo o poder da força G comprimindo o seu esôfago, não é exatamente a sensação mais apaziguadora do mundo. Pessoalmente, eu preferia lutar com uma onça.
Mais bacana era quando ele me deixava ir ver os carros de F-1 que "hospedava" na oficina de importados mantida em sociedade com o Giuseppe, que havia sido mecânico do Fangio, o Orlando, ex-funcionário da Gancia de Bebidas, e com o Emilio, seu querido companheiro das pistas.
Em vez de pernoitar em Interlagos como é hoje, as Ferraris dormiam cobertas por uma lona na rua Frederico Steidel, 58, no centro da cidade. A garagem ficava ao lado dos mais renomados prostíbulos da avenida São João. E, no sábado antes da corrida, a gente ia lá espiar se elas estavam com o sono redondo. Nem mesmo vigia havia na porta.
Quem consegue extrair prazer da visão de um pneu deslizando lateralmente pelo asfalto granulado ou entender a magia que é uma vela acender e apagar 8.500 vezes por minuto saberá o quão divertido foi ter tido um pai como esse.
Adicione a isso uma dose extraordinária de gentileza e você compreenderá que a tarefa mais fácil do mundo foi ter sido filha deste homem de quem mais de mil pessoas se lembraram em mensagens de pêsames para a minha família de segunda-feira até agora.
É um legado extraordinário que ele nos deixa, de alto astral, de amor ao esporte e de respeito ao próximo. É de se perguntar o que fez para merecer uma filha tão linguaruda.

barbara@uol.com.br

@barbaragancia

www.barbaragancia.com.br


Texto Anterior: "Discriminação foi do bailinho ao emprego"
Próximo Texto: Atmosfera
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.