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ARTIGO
Uma cidade maravilhosa só para VIPs
Nos camarotes, onde crime é beijo roubado, ricos e famosos curtem festa numa redoma
CECÍLIA GIANNETTI
COLUNISTA DA FOLHA
Um Rio de Janeiro climatizado, com ar-refrigerado, sem
moleques descalços sob marquises, sem balas perdidas,
bairros inteiros sem pedintes,
sem crimes senão beijo na boca
roubado. É a fantasia de Carnaval mais radical já inventada.
Dona do maior latifúndio da
Sapucaí, a Brahma sanitizou a
Cidade Maravilhosa, transformando-a em uma ficção exclusiva para seus VIPs.
Chão de pedras portuguesas
fake, Galvão Bueno, chope claro, chope escuro, Manoel Carlos e sua bengala, imitação de
bondinho, Alexia Deschamps,
passistas e ritmistas contratados para sambar no meio do
público, gente dormindo jogada nos sofás do espaço Motorola, Copacabana sem putas, Glória sem travestis, André Marques abraçado a um Rei Momo,
seguranças e "fiscais de brisa"
da produção do evento à caça
de penetras, Zeca Pagodinho
venerado, Marília Gabriela e
Regina Duarte mandando beijinhos, moças brilhantes (só de
purpurina) tentando comer o
enfeite de mesa que imitava frituras de boteco.
Quem tem seus contatos recebeu em casa sua camiseta
branca e vermelha com a logomarca da cerveja e pôde viver
duas madrugadas nesta loucura, em que a mais feia tragédia
urbana concebível era a celulite. Mulheres lindíssimas desfilavam pelo Rio cenográfico em
shortinhos ínfimos e microssaias, provando do alto de seus
saltos que não cometiam o pecado da carne flácida. Seus
acompanhantes, quase sempre
moços altos, com braços da largura de um tronco de árvore
centenária, serviam para espantar os fotógrafos, que só
conseguiam clicar de queixo
caído.
Quem são essas pessoas que
curtem o Carnaval dentro de
uma redoma, ao lado de Monica Bellucci, Lucy Liu, artistas
globais, misses e milionários?
Os camarotes são a versão
carnavalesca dos condomínios
de segurança máxima da Barra
da Tijuca. Mas sempre há quem
fure o cerco. "Aqui tô encontrando gente que eu conheço e
sei que não tem um tostão furado! Rárárá! Acho isso bacana, é
uma inversão das regras que só
tem no Brasil", comentou o
poeta Jorge Salomão, sentado
em uma espreguiçadeira sobre
as areias da praia fake, com direito a conchinhas e salva-vidas
(embora houvesse mar apenas
desenhado no cenário), e artistas como Ary Fontoura bronzeando-se sob os refletores em
frente à fachada do Copacabana Palace de mentirinha.
Desfile de escolas de samba
para quê, se aqui dentro tem
praia, com vendedor de biscoito Globo e carrinho de picolé?
Se existe até um Jardim Botânico com orquídeas e "chuva"
fina borrifada ocasionalmente
sobre os banquinhos de madeira dispostos em torno de lagos?
Gente de olhar perdido, como
no Carnaval de verdade, não há
fantasia que disfarce. A ruiva
Thalita, do "Big Brother Brasil
8", percebeu isso no camarote
da Schincariol, que contava até
com uma boate! -e garantiu no
pay-per-view: dava para sentir
uma tremenda "marola" na Sapucaí.
O Copa ficava colado a uma
Lapa livre do cheiro de urina,
com direito a uma reprodução
da Escadaria Selarón nas paredes de um palco. Mais tarde,
neste "Centro do Rio", apareceu o DJ Marlboro sobre uma
espécie de imitação de bondinho de Santa Teresa, acompanhado de duas loiras rebolativas e absurdamente em boa forma. Delírio geral.
Beth Carvalho tomava o café
da manhã no restaurante da
Brahma enquanto muitos ainda enchiam o pote de chope. A
sambista observava a very important people gritando com o
som de Marlboro "Eu só quero
é ser feliz, andar tranqüilamente na favela onde eu nasci" -a
favela só podia ser a Portelinha
da novela. "Não me incomoda
eles estarem cantando uma coisa que não vivem. O samba
também tem letras que falam
do morro e que qualquer classe
canta junto. O importante é
contar pra quem não é de favela
o que acontece lá. Mas funk? A
esta hora da manhã..."
Tainá Muller ("Cão Sem Dono") -que embarca em março
para Lisboa, onde vai gravar os
primeiros capítulos da próxima
novela do SBT- e Paula Braun
("O Cheiro do Ralo"), amigas e
agora sócias de sua própria produtora de cinema, não chegaram a ver a performance funk.
Espertas, deixaram o Rio cenográfico por volta de 2h da madrugada, a chamada "hora chique". São exceção na festa de
excessos. De 3h da madruga em
diante, famosos e anônimos estão nas mãos do palhaço.
Na hora que apavora, a segregação dos abadás ("eles" vestem a camiseta vermelha e
branca; "nós", imprensa, preta
e branca) não impede que ambos os lados desse apartheid sigam com suas tarefas, embora
um tanto breacos. Os famosos
pulam, bebem, beijam na boca,
rebolam e gritam urrú; os jornalistas pulam, bebem, anotam, fotografam, rebolam e gritam urrú. Tem mais VIP e imprensa do que gente.
A arte imita a vida, ou algo assim... Mesmo que aqui tudo seja
cosplay, quando o ator Marcelo
Faria me aborda para fazer
uma brincadeira, lembro do
episódio recente em que policiais surrupiaram cerveja de
um caminhão. "Bota aí, pode
publicar: foi o Caio Junqueira
quem roubou meu chope!", repetia, às gargalhadas, encostado a um dos balcões que representavam os mais conhecidos
botequins cariocas. Acusado, o
aspira Neto de "Tropa de Elite"
continuou bebericando o "material apreendido" ao lado de
Marcelo e de André Ramiro, o
aspira Matias; este, muito quieto, só tomava H2OH!.
O glamour dos salões de baile
tradicionais não foi substituído
pela revitalização dos blocos,
mas pelos abadás de cervejarias. O Brasil é o país dos VIPs;
o Rio, sua capital, balneário da
fama por tudo e por nada. E ai
de quem não for VIP nem amigo de um. Fica de fora, vivendo
na realidade.
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