São Paulo, quinta-feira, 06 de abril de 2006

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DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO

Rapper lançou o livro "Falcão - Meninos do Tráfico"; durante o encontro, houve bate-boca

MV Bill une manos e patricinhas na Daslu

Marlene Bergamo/Folha Imagem
De costas, o rapper e co-diretor do documentário "Falcão", MV Bill, é abraçado por Eliane Tranchesi, dona da Daslu


LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

UIRÁ MACHADO
COORDENADOR DE ARTIGOS E EVENTOS

Negros, pobres e favelados entraram, enfim, pela porta da frente no paraíso do consumo. Foi no lançamento do livro "Falcão - Meninos do Tráfico", do rapper global MV Bill, ontem, na Villa Daslu, a loja multimarcas da chiqueria paulistana, quando cerca de 30 deles, na condição de convidados, subiram ao 4º andar do prédio. Nunca a Daslu esteve tão colorida. "É engraçado ver os manos de boné andando ao lado das patricinhas", disse a estudante Mariana Baccarin, 28, referindo-se à presença de convidados negros em um evento no terraço da loja.
O motivo do encontro "dos manos com a loiras" foi o documentário "Falcão", produzido por MV Bill e veiculado na TV Globo há três semanas, mostrando a rotina de 17 meninos recrutados pelo tráfico de drogas. Dos 17 garotos, 16 já tinham morrido quando o documentário foi ao ar.
"Não estamos aqui para encontrar culpados pela tragédia em que vivem essas crianças", disse a empresária Eliana Tranchesi, uma das proprietárias da Daslu, ao abrir o encontro, que reuniu, além de MV Bill, o rapper Aliado G, recém-saído do gueto (foi a estrela da recente propaganda política gratuita do PC do B). "Estamos aqui para juntar todo mundo, ricos e pobres, as forças de todo mundo", disse Tranchesi.
Para a Daslu, acossada por acusações de sonegação fiscal, foi a oportunidade de mostrar o trabalho que vem desenvolvendo em parceria com a Central Única de Favelas, movimento organizado pelo próprio Bill. A Daslu colabora desde setembro do ano passado com a Cufa, e já financiou a construção de uma sede para a associação dos moradores da favela Coliseu, grudada no terreno da loja. Também está ajudando a levantar dois galpões para a realização de oficinas de hip hop, corte e costura e cabeleireiro.
Os 250 convidados ouviram Bill lançar a "culpa" pela miséria dos meninos do tráfico no passado escravocrata do país: "Eu não quero identificar culpados. Quando os negros vieram para cá, seqüestrados da África, a sociedade se partiu. Criou-se o estigma, a raiva e o ódio que persistem até hoje", disse. Aliado G defendeu a "união" de todos, ricos e pobres, brancos e negros para resolver o drama.
Na platéia, havia quem chorasse. No final do encontro, veio a pergunta fatal: "O consumismo é uma das causas dessa tragédia. Estamos no templo do consumo. Isso aqui é responsável. Se eu lembrar do país e da desigualdade em que vivemos, esse local é uma violência". Enquanto a pergunta era feita, o público começou a se agitar. Um estalava o dedo, outro comentava com quem estava ao lado, outra enrolava o cabelo.
MV Bill ouvia, impassível, sentado no trono branco em que foi instalado pela organização do evento. Lucia Pinheiro, 52, líder do Projeto Travessia, ONG que cuida de crianças de rua, prosseguiu: "Para satisfazer o sonho de consumo de comprar um tênis, quem está na favela às vezes tem de matar. Mas não para comprar um tênis da Daslu, porque aí ia ter de matar muito mais." E então, um gigantesco "xiiiiiiii" levantou-se na sala e a pancadaria começou. O empresário Francisco Ventura, proprietário das Óticas Ventura, atacou: "Pergunta logo!". Alguém acrescentou: "Cala a boca." Um garoto no fundão saiu em defesa de Lúcia: "Deixa ela falar", ao que Ventura respondeu: "Cala a boca você, seu tapado."
Desafiando o coro, Lucia continuava: "Numa próxima vez, tem de mostrar o lado bom, o lado bonito da favela". A audiência fazia mímica de tesoura com os dedos, pedindo para a produção cortar o microfone. Outros faziam giravam os dedos em volta da orelha, como se dissessem "é doida".
De repente, levanta-se Rosana Maria dos Santos, 36, secretária, negra, desempregada, líder comunitária da favela Coliseu, moradora de uma casa sem acabamento de um cômodo, que divide com a mãe, os dois filhos e a irmã -ah, Eliana Tranchesi diz que Rosana é sua "melhor amiga". "Bill e Eliana foram os primeiros a entrar na favela. Ofereceram coisas que ninguém nos ofereceu antes. Deram brincadeiras, cursos, ajudaram a concluir estudos. São os primeiros a nos dar valor. Eles vieram para nos ajudar." Sob aplausos, ela disse que Eliana entrou no seu barraco para ver a situação em que morava. "Ela é rica porque trabalhou muito para ser rica. Não rouba, não mata." Lavou a alma da platéia que urrava e aplaudia, vingada.
Irmã de Rosana, Rosemarie Maria dos Santos emendou: "Se a Eliana deve ou não para a Receita, é problema dela com a Receita. Dizem que ela está nos dando migalhas da Daslu, mas eu queria saber se essa dona já deu pelo menos a sua migalha." Sobre o encontro, Bill considerou ter cumprido uma missão: "Temos de levar a discussão para todos, inclusive à Daslu." A paz está selada.


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