São Paulo, terça-feira, 06 de abril de 2010

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"Indústria do fogo" em favelas é investigada

Promotoria apura fraudes em incêndios, provocados para moradores receberem verba pública ou "furar a fila" em programas habitacionais

Documento registrado em cartório apontou dias antes qual seria a próxima favela a ser incendiada; moradores confirmam o esquema

ROGÉRIO PAGNAN
DA REPORTAGEM LOCAL

O incêndio na favela Rocinha Paulistana (zona sul de SP), ocorrido na noite de 5 de dezembro do ano passado, foi tão pequeno que não chamou a atenção nem mesmo dos helicópteros das emissoras de TV.
Pelo cadastro da prefeitura, 122 famílias moravam no espaço atingido -cerca de 400 m2. Cada uma delas dividia, em tese, uma área de 6,5 m2, equivalente a de um Fusca (6,2 m2). Isso considerando que todos os barracos eram "sobradinhos" e que em cada pavimento morasse uma família diferente.
Para o Ministério Público Estadual e moradores ouvidos pela Folha, é uma fraude: parte das pessoas nunca morou ali e o incêndio foi fabricado -o fogo só começou após os moradores terem sido avisados e retirado seus pertences. O objetivo, segundo as investigações, era destruir a favela para receber dinheiro da prefeitura.
De 122 famílias, 119 receberam auxílio-aluguel de R$ 1.800 -R$ 300 por seis meses-, num total de R$ 214 mil.
Esse caso não é, segundo promotores, o único. Desde outubro, pelo menos seis incêndios ocorreram da mesma forma: ninguém se feriu ou perdeu objetos de valor.
No final do ano, a Folha recebeu informações sobre os incêndios forjados. Registrou em cartório, no dia 17 de dezembro, que o fogo atingiria, de novo, a favela Rocinha Paulistana, o que ocorreu em 14 de janeiro.

Aviso prévio
O novo incêndio era anunciado pelos próprios moradores. "Dia de incêndio, eles avisam até dentro dos ônibus", disse uma moradora. "Eles passam de manhã, e cada um vai repassando a notícia para o vizinho. Todos deixam as coisas de valor separadas", disse outra.
Além de ninguém se ferir, na maioria dos casos, as famílias conseguem retirar quase todos os seus bens dos barracos, inclusive geladeira, sofá e fogão.
Nos seis incêndios investigados, todas as famílias dispensaram os albergues da prefeitura porque disseram já ter lugar para morar provisoriamente. Funcionários do município que atuam nas favelas dizem que as equipes nem têm mais pressa para prestar socorro porque sabem que não haverá vítimas.
Segundo eles, alguns moradores e líderes comunitários fabricam os incêndios para "furar" fila nos programas habitacionais da prefeitura e do Estado -o que também é apurado.

Líderes
A gestão do prefeito Gilberto Kassab (DEM) diz que não cabe a ela investigar incêndio em favela. Sobre a Rocinha Paulistana, afirma não ver irregularidade -sustenta ser possível, sim, 122 famílias morarem ali.
O promotor José Carlos Freitas discorda. Para ele, essa posição reforça a suspeita de participação ou conivência de funcionários da prefeitura na fraude. "Está claro que não cabem tantas famílias ali", disse.
Esses incêndios, segundo Promotoria e moradores, são organizados por pessoas de dentro e de fora da favela e quase sempre com a participação de líderes comunitários -que orientam o cadastro da prefeitura para os desabrigados.
Com essa "autoridade", podem incluir no cadastro quem nunca morou ali, até pessoas de fora do Estado. Moradores dizem que alguns cadastros são feitos após o fogo. No incêndio de dezembro na Rocinha Paulistana, dizem moradores, menos de 20 barracos foram queimados, mas no cadastro municipal, feito com a ajuda dos líderes comunitários, esses 20 barracos teriam subdivisões.
Para dar esse atestado, ainda segundo os moradores, os líderes chegam a cobrar cerca de 20% do valor do cheque recebido pela família desabrigada.
Há casos, segundo a investigação, em que os próprios líderes usam CPFs de "laranjas" e pagam por isso.


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