São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

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RELIGIÃO

Pastor que negociou o fim da rebelião na Casa de Custódia diz ser respeitado por traficantes no Rio

"A cocaína é o Demônio ralado, a cerveja é a Pombajira em líquido"

Felipe Varanda/Folha Imagem
O pastor Marcos Pereira da Silva, que diz ganhar celulares e carros de presente de seus amigos


ELVIRA LOBATO
DA SUCURSAL DO RIO

O pastor Marcos Pereira da Silva, 47, presidente da Assembléia de Deus dos Últimos Dias, gaba-se de ter não apenas acesso aos mais perigosos traficantes de drogas do Rio como o respeito da liderança do Comando Vermelho, em que estão Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, e Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco.
Silva afirma ainda ter conseguido a conversão religiosa de traficantes do Terceiro Comando, facção inimiga do CV, entre os quais cita Alberico Azevedo de Medeiros, o Derico, que dirige, em liberdade, o tráfico na favela do Acari.
O pastor diz que toca o coração dos bandidos ao dizer que foi o Diabo que os levou a cometer os crimes e que podem mudar de vida se aceitarem Cristo. Para ele, o Demônio é responsável por todos os desvios de conduta do ser humano, do adultério e alcoolismo a assassinatos, roubos, estupros, tortura, tráfico e corrupção.
"A cocaína é o Demônio ralado. A cerveja é a Pombajira [entidade cultuada pelas religiões afro-brasileiras, companheira de Exu] em líquido. Fumei até os 33 anos, mas era o diabo que fumava pela minha boca. Consigo conscientizá-los [os traficantes] quando mostro que até o desejo desordenado da carne é coisa do Demônio."
Antes de se tornar pastor, Pereira foi garçom e maître em casas noturnas da zona sul do Rio. Filho de motorista de caminhão, circula em um Land Rover, segundo ele doado por ""amigos", mas continua morando no mesmo quarteirão pobre onde nasceu, no Jardim do Éden, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense.
A intervenção que pôs fim à rebelião na Casa de Custódia deu notoriedade ao pastor, que passou os últimos dias ocupado em dar entrevistas. Na quinta-feira, ele recebeu a reportagem da Folha. Abaixo, os principais trechos da conversa.
 

Folha - O sr. diz nos cultos que fumou maconha, que bebia e que até levou um tiro na perna em uma briga antes de se tornar pastor. O que o fez mudar de vida?
Marcos Pereira da Silva -
Em 1989, o Diabo apareceu para mim duas vezes, em minha casa e dentro do ônibus, quando eu ia para o trabalho. Um garçom evangélico que trabalhava comigo rezou, e o Diabo se foi. Entrei em uma igreja da Assembléia de Deus e encontrei a paz. Até então, eu achava os crentes cafonas, chatos e feios.

Folha - Por que as mulheres em sua igreja se vestem com túnica larga até os pés, sem maquiagem e sem qualquer adereço que destaque a feminilidade?
Pereira -
Eu sigo a doutrina bíblica ao pé da letra. Nosso corpo é o templo do Espírito Santo, e o corpo da mulher é para o marido. Elas não são obrigadas a vestir a túnica, mas vestem por opção.
Sou mais exigente do que outras denominações evangélicas porque quero que Deus opere. Quero curas. Ver o paralítico andar, arrancar a arma do traficante, a cocaína do bandido. Somos peregrinos, acreditamos na vinda de Jesus, nos dons espirituais.

Folha - Os fiéis de sua igreja não podem usar preto nem vermelho, não podem ver TV, não comem carne de porco. Por quê?
Pereira -
O vermelho é dominado pela Pombajira. No preto habitam as trevas. Não comemos carne de porco por ser um animal sujo. A TV é maléfica. As novelas são mentiras, e não precisamos de mentiras. Se você tira a TV, pode ver os anjos, os arcanjos, os querubins e a glória de Deus.

Folha - O sr. usa um Land Rover e há dois carros com o nome da igreja no pátio. Ficou rico?
Pereira -
Cerca de 80 pessoas moram comigo e com a minha família no prédio da igreja, mas umas 200 almoçam aqui todos os dias. Temos um gasto mensal de R$ 50 mil. Vivemos das doações, dos CDs de música gospel e da venda de doces em compota, que os irmãos oferecem de porta em porta nas favelas. Todo o dinheiro que entra é gasto na igreja. Mas recebo muitos presentes. Todo ano ganho um carro no meu aniversário. Ganho ternos, relógios e telefones celulares.

Folha - Quem dá esses presentes?
Pereira -
Tenho muitos amigos. Mais de 10 mil pessoas vêm aos meus aniversários, e elas querem me dar presentes.

Folha - O sr. já esteve com Fernandinho Beira-Mar? O que acha dele?
Pereira -
Estive com ele no presídio Bangu 1. Orei por ele, e ele caiu endemoniado no chão. Legiões de demônios foram expulsos das galerias daquele presídio. O Fernando era motorista de caminhão, ficou desempregado, sem condição de sobrevivência. Começou a fazer amizades e a trabalhar com pessoas que traficavam. Os que estavam acima dele morreram, e ele ficou dono do movimento, passou a fazer coisas terríveis por falta de cultura, de religião e de trabalho. Foi marginalizado pela mídia, que diz muitas inverdades sobre ele. É um homem manso e está maravilhado com a igreja. Jesus liberta qualquer traficante.

Folha - Que outros criminosos o sr. conheceu?
Pereira -
Estive com o Ernaldo Pires de Medeiros, o Uê, pouco antes de ele ser morto em Bangu 1 [Uê foi assassinado em setembro de 2002, durante motim liderado por Beira-Mar]. Estive várias vezes com Elias Maluco, tanto na rua quanto na cadeia.

Folha - Ele lhe contou por que matou o jornalista Tim Lopes?
Pereira -
O Elias Maluco não matou o Tim Lopes. Foram pessoas do comando dele, mas ele não estava na ação.

Então, para o senhor, os traficantes são pessoas boas?
Pereira -
O que habita no homem é que faz o homem ser mau. A cocaína é o Diabo ralado, a cerveja é a Pombajira em líquido. Fumei até os 33 anos. Era o diabo que fumava pela minha boca. Consigo conscientizá-los de que até o desejo desordenado da carne é o Demônio.

Folha - Sua contribuição para o fim da rebelião na Casa de Custódia de Benfica lhe deu grande notoriedade. Quais são suas pretensões daqui para frente? Pretende fazer carreira política?
Pereira -
Sou contra qualquer crente ter cargo político, mas apoio todos os políticos, porque a autoridade, mesmo não sendo evangélica, é instituída por Deus. Os políticos não podem cumprir os compromissos que assumem sem recursos. A mentira começa por aí, e a mentira não é de Deus.
Minha meta é continuar fazendo a obra de Deus. Não tenho pretensões monetárias de formar riqueza. Sendo conhecido ou não, meu objetivo é só pregar.

Folha - Seu trânsito entre traficantes despertou suspeitas de que a igreja seja usada para lavagem de dinheiro do tráfico de drogas.
Pereira -
Há especulações acerca disso, mas não me envolvo com o dinheiro do tráfico. As polícias Militar e Civil já fizeram incursões aqui e nada acharam. É natural que pensem que sou do tráfico porque entro nas favelas e nos presídios. O correto é que façam levantamento da minha vida. Não sou contra isso, nem me assusto, porque nunca peguei uma moeda de traficantes. Se eu recebesse dinheiro de Marcinho VP, nunca poderia entrar na favela do Acari, que é área do Derico.

Folha - Como o sr. se comunica com eles?
Pereira -
Eu mando que eles deixem a boca-de-fumo, o cigarro, a maconha, a cocaína, para ficar com cara de homem. O verdadeiro macho não é o que dá tiro, nem o que é traficante. O que faz a vontade de Deus é o macho. Não critico o traficante. Vou até ele para arrancá-lo das trevas.

Folha - Mesmo tendo sido chamado para intermediar a rendição de presos rebelados, o que só confirma a falência da política de segurança do Estado, o sr. se desdobra em elogios à governadora Rosinha Matheus e ao marido dela, o secretário de Segurança, Anthony Garotinho. Por que isso?
Pereira -
Porque as autoridades são constituição divina. A Bíblia fala que quem resiste à autoridade resiste à ordenação de Deus. Se ele está sendo mau governante ou não, quem o colocou lá foi Deus, e quem sou eu para lutar contra as ordens de Deus? No mundo, rege o maligno. Não adianta reformar a polícia, trocar de governo, fazer reuniões internacionais. O mundo terá que se render a Cristo.

Folha - Então o sr. é contra qualquer contestação dentro ou fora dos presídios?
Pereira -
Sou contra baderna. Deus é que tem o poder de julgar, absolver, derrubar e levantar.

Folha - O mesmo vale para sua relação com os bandidos presos?
Pereira -
Não mexo com os traficantes e com os estupradores. Meu objetivo é resgatá-los.

Folha - Mas isso não elimina o tráfico. Se um traficante sai, outro toma o lugar dele.
Pereira -
É natural. Jesus fala que o ímpio brota como água.


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