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PATRIMÔNIO
Para Henri-Pierre Jeudy, processo tem provocado a morte dos centros históricos, que se transformaram em "museus"
Revitalização petrifica cidades, diz filósofo
AMARÍLIS LAGE
ENVIADA ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO
O processo adotado em praticamente todas as grandes cidades
para a revitalização dos centros
históricos tem, na verdade, promovido o esvaziamento e a morte
dessas regiões. A avaliação é do filósofo francês Henri-Pierre Jeudy,
60, que, com voz calma e gestos
tranqüilos, dedica-se a desconstruir o que chama de petrificação
e estetização das cidades.
Para ele, a transformação dos
centros históricos em "museus"
tem como origem uma estratégia
de marketing para atrair turistas
que se soma ao medo da população de perder sua identidade cultural. Contraditoriamente, diz, o
resultado são cidades mais homogêneas e menos interessantes.
A questão é o tema de seu mais
recente livro, "Espelho das Cidades", lançado na última quinta-feira no Rio de Janeiro. A obra
reúne dois livros lançados previamente na França, "A Maquinaria
Patrimonial" e "Crítica da Estética Urbana".
Autor de mais de 20 livros -alguns dos quais, como "Memórias
do Social" e "O Corpo como Objeto de Arte" foram traduzidos
para o português-, Jeudy tem
doutorado em sociologia pela
Universidade de Nanterre e é diretor do Laios (Laboratório de
Antropologia das Instituições e
Organizações Sociais) do Centro
Nacional da Pesquisa Científica
da França. Leia a seguir trechos da
entrevista dada à Folha após uma
palestra ministrada na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Folha - Em seu livro, o "Espelho
das Cidades", o senhor faz uma crítica ao processo de patrimonialização das cidades. Quais são os problemas que o senhor observa no
processo de revitalização dos centros históricos?
Henri-Pierre Jeudy - Há no mundo inteiro uma tendência de conservação patrimonial que se exerce sobre a cidade por meio da reconstituição do centro histórico.
É uma maneira de dar uma certa
imagem estética internacional para o turismo, de guardar uma
idéia de unidade e harmonia da
cidade. O problema é que o processo de conservação patrimonial
torna as cidades cada vez mais parecidas. No fundo, há sempre um
centro histórico, onde tudo é refeito da mesma forma. Normalmente o início desse processo é
uma busca de identidade da cidade que leva a cidades patrimonializadas, onde o centro é colocado
como a vitrine de uma loja.
Folha - Mas quais são as similaridades entre o centro histórico de
Salvador e de Paris, por exemplo?
Não são cidades muito diferentes?
Jeudy - Eles são diferentes pelos
edifícios, mas são pensados da
mesma forma, eles trazem a imagem de uma museografia interna
na cidade. Na Europa, quase todas as cidades passaram por isso:
Paris, Marseille, Lyon... Eu conheci a Bahia há 15 anos e agora é bem
diferente. O centro, que era uma
área viva, se transformou num
museu, um pólo para turistas. Esse princípio da conservação, de
fazer do centro um museu, é uma
síndrome de morte da cidade. Ele
petrifica a cidade.
Folha - O senhor fala de morte,
mas o discurso usado nesses processos é de revitalização.
Jeudy - Claro, é isso mesmo. Mas
é o inverso que ocorre, é um processo de morte. As pessoas que
moravam no Pelourinho foram
expulsas, isso quer dizer que o aspecto vivo da cidade desaparece
com a patrimonialização. Havia
uma mistura da população, a região era partilhada por todos.
Folha - O diagnóstico que se faz
desses centros históricos antes dos
projetos de revitalização é que, geralmente, eles haviam se tornado
locais violentos. O que poderia ter
sido feito para que a região recuperasse a qualidade de vida sem se
transformar num museu?
Jeudy - No caso do Pelourinho,
por exemplo, seria restaurar mantendo a população que morava
ali, mas isso talvez custasse mais
caro. Seria uma opção melhor.
Tenta-se fazer uma tábula rasa da
região, expulsa a população, muda a configuração do lugar para
atrair um público mais rico, restaurantes etc... Poderíamos imaginar fazer a mesma coisa mantendo a população e com a população, por meio da arquitetura
participativa, na qual os próprios
moradores e as instituições que ali
atuam fizessem, com a ajuda do
governo, a restauração do lugar. A
prática hoje é: antes a gente expulsa, depois restaura tudo e estetiza
para a população mais rica que
chega para morar ali.
Folha - Mas essa população rica
vem realmente? No centro de São
Paulo, por exemplo, há museus e
centros culturais que esse público
mais rico visita, depois entra no
carro e vai embora.
Jeudy - É muito difícil fazer uma
nova população ocupar o espaço... Isso acontece também na Europa, onde os centros das cidades
são vazios. Em Paris, há cada vez
menos habitantes no centro.
Folha - O que deu início a esse
processo de patrimonialização?
Jeudy - O trabalho de patrimonialização do centro das cidades
começou há cerca de 50 anos, na
Europa, de uma forma muito ativa. Na origem, há uma ilusão política que consiste em acreditar que
a imagem pública da cidade, nacional ou internacional, depende
de seu centro patrimonializado. É
uma estratégia de marketing, de
comunicação política. Na França
dizemos que Paris, hoje, é uma
grife como Coca-Cola.
Folha - E por que o centro histórico é escolhido para representar a
identidade atual das cidades? Isso
reflete um medo de perder a identidade cultural?
Jeudy - Sim. Eu acredito que há
um medo de perder essa identidade, mas isso é uma contradição
porque a cidade sempre possui
sua identidade. Uma cidade, mesmo que não seja extremamente
bonita, tem uma identidade. São
Paulo é considerada muito feia,
mas essa feiúra é uma estética fantástica, nós podemos amar também o que há de feio na cidade, a
ponto de esses territórios passarem a ser considerados tão bonitos quanto o centro de Salvador.
Além disso, há, na Europa, o dever da memória. Uma utilidade
da conservação patrimonial é
proteger os rituais, manter uma
lembrança simbólica do espaço.
Na Europa, as pessoas sentem
culpa se esquecem alguma coisa,
o que também é resultado das
guerras [pelas quais os países passaram]. "Como é possível esquecer?", se perguntam. Há muitos
memoriais em todos os lugares,
porque é necessário lembrar, lembrar, lembrar. Mas assim é impossível viver o presente.
Folha - Mas o sr. acredita que os
valores importantes de uma cultura são capazes de sobreviver naturalmente? Na ausência de uma política específica para defender o
patrimônio, ele não corre o risco de
ser destruído pela imposição cultural, pela pressão financeira?
Jeudy - Nós podemos ter uma
política específica para proteger
esse patrimônio, mas isso depende do tipo de política adotada. A
atual é muito rígida, as regras da
Unesco, por exemplo, são muito
duras. Nós podemos imaginar
uma política que permita à população um papel ativo na transformação patrimonial, mas isso é
muito raro. Na Europa nós temos
leis de preservação restritivas:
quando uma coisa é declarada patrimônio, não se pode mais tocar
nela. Para mim, isso é um erro.
Folha - Os centros patrimonializados são sustentáveis? Essa homogeneidade não pode acabar desestimulando o turismo?
Jeudy - Isso pode causar uma fadiga no turista porque ele viaja e
vê sempre a mesma coisa. O que
hoje se faz para evitar essa fadiga é
colocar o tempo todo animações
artísticas no centro, com festivais
de músicas, festas, artistas de rua.
Mas é uma vida artística artificial,
porque vem de uma vontade política muito forte e, no momento
em que o governo parar de estimular que elas fiquem ali, o centro fica vazio. Não há uma vida
própria, o centro se transformou
num cenário de teatro.
Folha - O sr. menciona em seu livro que o Japão tem uma outra noção de patrimônio. Como os japoneses lidam com esse conceito?
Jeudy - O primeiro monumento
a ser declarado patrimônio no Japão é a ruína de um edifício que
sobreviveu à bomba de
Hiroshima. É a partir desse momento que os japoneses começaram a pensar sobre isso. Lá, todos
os templos são refeitos de 20 em
20 anos, com outros materiais.
Tóquio é a própria cidade sem
memória, quase a representação
contrária da cidade patrimonial.
Isso está ligado ao fato de os japoneses viverem com a idéia de que,
a qualquer momento, um terremoto é possível. Não há necessidade de conservar nenhum prédio porque o chão vai afundar. Ao
mesmo tempo, os rituais são vividos diariamente, as tradições estão vivas e, por isso, não há uma
necessidade de petrificá-las. Hoje,
porém, a idéia de conservação patrimonial começa a crescer no Japão. Lá eu visitei uma mina de
prata enorme completamente
conservada com robôs que repetem os movimentos que os mineiros faziam ali no passado. É muito
kitsch, muito Disney World. Eles
amam essas coisas, assim como
reproduzir locais e prédios de cidades européias.
Folha - O acréscimo de elementos
contemporâneos a espaços históricos provoca muita polêmica. Como
o sr. avalia essas intervenções?
Jeudy - É sempre uma medida
polêmica, pois há o risco de desarmonia, mas, geralmente, funciona. Os arquitetos contemporâneos são mais sensíveis a essa
aliança porque há muita coisa já
feita, o contexto da cidade demanda aos arquitetos esse tipo de
alteração. Esse processo é salutar,
caso contrário, somos completamente dominados pelo passado.
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