São Paulo, segunda-feira, 06 de junho de 2005

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PATRIMÔNIO

Para Henri-Pierre Jeudy, processo tem provocado a morte dos centros históricos, que se transformaram em "museus"

Revitalização petrifica cidades, diz filósofo

AMARÍLIS LAGE
ENVIADA ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO

O processo adotado em praticamente todas as grandes cidades para a revitalização dos centros históricos tem, na verdade, promovido o esvaziamento e a morte dessas regiões. A avaliação é do filósofo francês Henri-Pierre Jeudy, 60, que, com voz calma e gestos tranqüilos, dedica-se a desconstruir o que chama de petrificação e estetização das cidades.
Para ele, a transformação dos centros históricos em "museus" tem como origem uma estratégia de marketing para atrair turistas que se soma ao medo da população de perder sua identidade cultural. Contraditoriamente, diz, o resultado são cidades mais homogêneas e menos interessantes.
A questão é o tema de seu mais recente livro, "Espelho das Cidades", lançado na última quinta-feira no Rio de Janeiro. A obra reúne dois livros lançados previamente na França, "A Maquinaria Patrimonial" e "Crítica da Estética Urbana".
Autor de mais de 20 livros -alguns dos quais, como "Memórias do Social" e "O Corpo como Objeto de Arte" foram traduzidos para o português-, Jeudy tem doutorado em sociologia pela Universidade de Nanterre e é diretor do Laios (Laboratório de Antropologia das Instituições e Organizações Sociais) do Centro Nacional da Pesquisa Científica da França. Leia a seguir trechos da entrevista dada à Folha após uma palestra ministrada na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Folha - Em seu livro, o "Espelho das Cidades", o senhor faz uma crítica ao processo de patrimonialização das cidades. Quais são os problemas que o senhor observa no processo de revitalização dos centros históricos?
Henri-Pierre Jeudy -
Há no mundo inteiro uma tendência de conservação patrimonial que se exerce sobre a cidade por meio da reconstituição do centro histórico. É uma maneira de dar uma certa imagem estética internacional para o turismo, de guardar uma idéia de unidade e harmonia da cidade. O problema é que o processo de conservação patrimonial torna as cidades cada vez mais parecidas. No fundo, há sempre um centro histórico, onde tudo é refeito da mesma forma. Normalmente o início desse processo é uma busca de identidade da cidade que leva a cidades patrimonializadas, onde o centro é colocado como a vitrine de uma loja.

Folha - Mas quais são as similaridades entre o centro histórico de Salvador e de Paris, por exemplo? Não são cidades muito diferentes?
Jeudy -
Eles são diferentes pelos edifícios, mas são pensados da mesma forma, eles trazem a imagem de uma museografia interna na cidade. Na Europa, quase todas as cidades passaram por isso: Paris, Marseille, Lyon... Eu conheci a Bahia há 15 anos e agora é bem diferente. O centro, que era uma área viva, se transformou num museu, um pólo para turistas. Esse princípio da conservação, de fazer do centro um museu, é uma síndrome de morte da cidade. Ele petrifica a cidade.

Folha - O senhor fala de morte, mas o discurso usado nesses processos é de revitalização.
Jeudy -
Claro, é isso mesmo. Mas é o inverso que ocorre, é um processo de morte. As pessoas que moravam no Pelourinho foram expulsas, isso quer dizer que o aspecto vivo da cidade desaparece com a patrimonialização. Havia uma mistura da população, a região era partilhada por todos.

Folha - O diagnóstico que se faz desses centros históricos antes dos projetos de revitalização é que, geralmente, eles haviam se tornado locais violentos. O que poderia ter sido feito para que a região recuperasse a qualidade de vida sem se transformar num museu?
Jeudy -
No caso do Pelourinho, por exemplo, seria restaurar mantendo a população que morava ali, mas isso talvez custasse mais caro. Seria uma opção melhor. Tenta-se fazer uma tábula rasa da região, expulsa a população, muda a configuração do lugar para atrair um público mais rico, restaurantes etc... Poderíamos imaginar fazer a mesma coisa mantendo a população e com a população, por meio da arquitetura participativa, na qual os próprios moradores e as instituições que ali atuam fizessem, com a ajuda do governo, a restauração do lugar. A prática hoje é: antes a gente expulsa, depois restaura tudo e estetiza para a população mais rica que chega para morar ali.

Folha - Mas essa população rica vem realmente? No centro de São Paulo, por exemplo, há museus e centros culturais que esse público mais rico visita, depois entra no carro e vai embora.
Jeudy -
É muito difícil fazer uma nova população ocupar o espaço... Isso acontece também na Europa, onde os centros das cidades são vazios. Em Paris, há cada vez menos habitantes no centro.

Folha - O que deu início a esse processo de patrimonialização?
Jeudy -
O trabalho de patrimonialização do centro das cidades começou há cerca de 50 anos, na Europa, de uma forma muito ativa. Na origem, há uma ilusão política que consiste em acreditar que a imagem pública da cidade, nacional ou internacional, depende de seu centro patrimonializado. É uma estratégia de marketing, de comunicação política. Na França dizemos que Paris, hoje, é uma grife como Coca-Cola.

Folha - E por que o centro histórico é escolhido para representar a identidade atual das cidades? Isso reflete um medo de perder a identidade cultural?
Jeudy -
Sim. Eu acredito que há um medo de perder essa identidade, mas isso é uma contradição porque a cidade sempre possui sua identidade. Uma cidade, mesmo que não seja extremamente bonita, tem uma identidade. São Paulo é considerada muito feia, mas essa feiúra é uma estética fantástica, nós podemos amar também o que há de feio na cidade, a ponto de esses territórios passarem a ser considerados tão bonitos quanto o centro de Salvador. Além disso, há, na Europa, o dever da memória. Uma utilidade da conservação patrimonial é proteger os rituais, manter uma lembrança simbólica do espaço. Na Europa, as pessoas sentem culpa se esquecem alguma coisa, o que também é resultado das guerras [pelas quais os países passaram]. "Como é possível esquecer?", se perguntam. Há muitos memoriais em todos os lugares, porque é necessário lembrar, lembrar, lembrar. Mas assim é impossível viver o presente.

Folha - Mas o sr. acredita que os valores importantes de uma cultura são capazes de sobreviver naturalmente? Na ausência de uma política específica para defender o patrimônio, ele não corre o risco de ser destruído pela imposição cultural, pela pressão financeira?
Jeudy -
Nós podemos ter uma política específica para proteger esse patrimônio, mas isso depende do tipo de política adotada. A atual é muito rígida, as regras da Unesco, por exemplo, são muito duras. Nós podemos imaginar uma política que permita à população um papel ativo na transformação patrimonial, mas isso é muito raro. Na Europa nós temos leis de preservação restritivas: quando uma coisa é declarada patrimônio, não se pode mais tocar nela. Para mim, isso é um erro.

Folha - Os centros patrimonializados são sustentáveis? Essa homogeneidade não pode acabar desestimulando o turismo?
Jeudy -
Isso pode causar uma fadiga no turista porque ele viaja e vê sempre a mesma coisa. O que hoje se faz para evitar essa fadiga é colocar o tempo todo animações artísticas no centro, com festivais de músicas, festas, artistas de rua. Mas é uma vida artística artificial, porque vem de uma vontade política muito forte e, no momento em que o governo parar de estimular que elas fiquem ali, o centro fica vazio. Não há uma vida própria, o centro se transformou num cenário de teatro.

Folha - O sr. menciona em seu livro que o Japão tem uma outra noção de patrimônio. Como os japoneses lidam com esse conceito?
Jeudy -
O primeiro monumento a ser declarado patrimônio no Japão é a ruína de um edifício que sobreviveu à bomba de Hiroshima. É a partir desse momento que os japoneses começaram a pensar sobre isso. Lá, todos os templos são refeitos de 20 em 20 anos, com outros materiais. Tóquio é a própria cidade sem memória, quase a representação contrária da cidade patrimonial. Isso está ligado ao fato de os japoneses viverem com a idéia de que, a qualquer momento, um terremoto é possível. Não há necessidade de conservar nenhum prédio porque o chão vai afundar. Ao mesmo tempo, os rituais são vividos diariamente, as tradições estão vivas e, por isso, não há uma necessidade de petrificá-las. Hoje, porém, a idéia de conservação patrimonial começa a crescer no Japão. Lá eu visitei uma mina de prata enorme completamente conservada com robôs que repetem os movimentos que os mineiros faziam ali no passado. É muito kitsch, muito Disney World. Eles amam essas coisas, assim como reproduzir locais e prédios de cidades européias.

Folha - O acréscimo de elementos contemporâneos a espaços históricos provoca muita polêmica. Como o sr. avalia essas intervenções?
Jeudy -
É sempre uma medida polêmica, pois há o risco de desarmonia, mas, geralmente, funciona. Os arquitetos contemporâneos são mais sensíveis a essa aliança porque há muita coisa já feita, o contexto da cidade demanda aos arquitetos esse tipo de alteração. Esse processo é salutar, caso contrário, somos completamente dominados pelo passado.

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