São Paulo, quinta, 6 de agosto de 1998

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INCULTA & BELA
A tapa e o desapercebido

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha


No último domingo, o caderno Esporte da Folha trouxe interessante matéria sobre o clássico dos Américas -o mineiro e o potiguar.
Num dos quadros, destacava-se o fato de o América de Minas ter torcedores ilustres, entre os quais os ex-presidentes Juscelino e Tancredo.
Em sintonia com isso -e certamente por causa disso-, um outro quadro trazia em destaque a seguinte frase: "É mais fácil achar cabelo em ovo do que um torcedor do América desapercebido".
Por fim, a legenda: "Ditado popular antigo em Minas Gerais, satirizando o fato de não haver "americano' pobre".
Onde está a sutileza? Está em "desapercebido". Muita gente se confunde com "desapercebido" e "despercebido".
E a confusão aumenta quando se recorre aos dicionários, que dão as duas como parcialmente equivalentes.
Se uma pessoa passa e ninguém nota, ninguém vê, essa pessoa passa "despercebida" ou "desapercebida".
Sim, de acordo com os dicionários, pode-se usar uma ou outra. O mais interessante -e preocupante- é que nos vestibulares não se costuma aceitar "desapercebido" nesse tipo de frase, o que no fundo é mera idiossincrasia.
Ao afirmar que "aperceber" pode equivaler a "perceber, notar", o dicionário Aurélio faz uma observação contundente: " É excelente -e não condenável, como querem puristas maníacos- o uso de aperceber nas acepções de notar, ver, distinguir, perceber".
Agora, cuidado! O fato de "despercebido" ser equivalente a "desapercebido" não quer dizer que a recíproca seja integralmente verdadeira.
Tradução: como "aperceber" tem também o sentido de "abastecer, fornecer, prover", "desapercebido" pode significar "não abastecido, desprovido, privado de recursos".
Isso nos faz concluir que, no provérbio mineiro, "desapercebido" significa "falto, necessitado, carente de recursos", ou seja, "pobre".
A língua é muito mais surpreendente do que se possa imaginar. Quando se ensina à garotada algo que pouco se vê na linguagem comum, real, tem-se a sensação de ensinar o nada, o irreal. De repente, de um provérbio antigo, popular, vem a surpresa.
Certa vez, eu estava em Belém. Eram três ou quatro horas da tarde, e, para variar, chovia. Santa chuva! Enquanto esperava que passasse, distraía-me com a conversa de duas funcionárias das Lojas Americanas. Pelas tantas, uma diz: "Ele deu uma tapa!".
E eu, que sempre ensinei que "tapa" pode ser palavra masculina ou feminina -está nos dicionários-, descobri que aquilo era real, e não mera maluquice de "gramático doentio". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

E-mail: inculta@uol.com.br



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