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MOACYR SCLIAR
O triunfo da fila
Filas e multidão são parte do lazer
dos paulistanos. O fenômeno mais
curioso em relação às filas é a filosofia do "se está cheio, é bom". Para o
médico Jean Pierre Alencar o gosto
por lugares entupidos é cultural:
"Meu amigo de Fortaleza vive dizendo que paulistano adora uma fila,
quando vê uma entra sem saber por
quê".
Revista da Folha, 26.ago.2004
Durante muito tempo, ficar em filas foi considerado
uma chateação --um saco, como
se dizia no final do século 20 e
mesmo no começo do século 21.
As pessoas reclamavam do tempo
que perdiam, e um advogado chegou a entrar na Justiça pleiteando
indenização por ter ficado uma
hora esperando para ser atendido
em certa repartição pública, para
onde fora convocado, segundo
ele, a contragosto. A figura do fura-filas era detestada, mas também invejada, pela esperteza que
isso representava.
Aos poucos, porém, as coisas foram mudando. Não havendo outra alternativa a não ser transformar o limão em limonada, as pessoas foram descobrindo que ficar
na fila é parte da existência; que
isto pode ser feito com resignação
e até mesmo com prazer para não
falar em inesperados ganhos. Casais que raramente se viam constataram que na fila podiam colocar a conversa conjugal em dia,
discutir orçamento doméstico e os
problemas dos filhos. Já os solitários encontravam na fila um lugar de convivência, verdade que
um pouco limitada; mas, no mínimo, podiam conversar com dois
ou três companheiros situados
atrás e com dois ou três situados
mais adiante. Estes aliás eram os
preferidos, por causa da obscura
idéia segundo a qual aqueles que
chegam primeiro têm a vocação
dos vencedores.
Não se tratava apenas de fazer
novas amizades; muitos namoros
nasceram assim, e vários deles
terminaram em casamento. Um
jovem casal inclusive fez questão
de casar na própria fila, fato que
foi muito divulgado. O dono da
casa noturna diante da qual se
formara a fila ofereceu o estabelecimento para a festa, mas eles recusaram: tratava-se de homenagear a fila per se, como entidade
autônoma e viva.
Em certas filas, lugares começaram a ser disputados, porque davam status. Filas para espetáculos
com artistas prestigiados, por
exemplo. Ou filas de autógrafos
de celebridades. E aí surgiu a
grande sacada, aquela que marcou época e catapultou a fila para
as páginas da História.
Alguém, cujo nome não ficou
registrado, criou a fila autônoma.
Esta fila não era para comprar ingressos, nem para entrar em lugar
algum. Era uma fila para aqueles
que gostavam de ficar em fila,
àquela altura uma legião. Fez tal
sucesso, que foi necessário vender
ingressos para a dita fila. Um dia
formou-se, diante da bilheteria,
uma fila: era a fila para conseguir
lugar na fila. E isto representou a
consagração definitiva da fila como modo de vida.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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