São Paulo, segunda-feira, 06 de setembro de 2004

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MOACYR SCLIAR

O triunfo da fila

 Filas e multidão são parte do lazer dos paulistanos. O fenômeno mais curioso em relação às filas é a filosofia do "se está cheio, é bom". Para o médico Jean Pierre Alencar o gosto por lugares entupidos é cultural: "Meu amigo de Fortaleza vive dizendo que paulistano adora uma fila, quando vê uma entra sem saber por quê".
Revista da Folha, 26.ago.2004

Durante muito tempo, ficar em filas foi considerado uma chateação --um saco, como se dizia no final do século 20 e mesmo no começo do século 21. As pessoas reclamavam do tempo que perdiam, e um advogado chegou a entrar na Justiça pleiteando indenização por ter ficado uma hora esperando para ser atendido em certa repartição pública, para onde fora convocado, segundo ele, a contragosto. A figura do fura-filas era detestada, mas também invejada, pela esperteza que isso representava.
Aos poucos, porém, as coisas foram mudando. Não havendo outra alternativa a não ser transformar o limão em limonada, as pessoas foram descobrindo que ficar na fila é parte da existência; que isto pode ser feito com resignação e até mesmo com prazer para não falar em inesperados ganhos. Casais que raramente se viam constataram que na fila podiam colocar a conversa conjugal em dia, discutir orçamento doméstico e os problemas dos filhos. Já os solitários encontravam na fila um lugar de convivência, verdade que um pouco limitada; mas, no mínimo, podiam conversar com dois ou três companheiros situados atrás e com dois ou três situados mais adiante. Estes aliás eram os preferidos, por causa da obscura idéia segundo a qual aqueles que chegam primeiro têm a vocação dos vencedores.
Não se tratava apenas de fazer novas amizades; muitos namoros nasceram assim, e vários deles terminaram em casamento. Um jovem casal inclusive fez questão de casar na própria fila, fato que foi muito divulgado. O dono da casa noturna diante da qual se formara a fila ofereceu o estabelecimento para a festa, mas eles recusaram: tratava-se de homenagear a fila per se, como entidade autônoma e viva.
Em certas filas, lugares começaram a ser disputados, porque davam status. Filas para espetáculos com artistas prestigiados, por exemplo. Ou filas de autógrafos de celebridades. E aí surgiu a grande sacada, aquela que marcou época e catapultou a fila para as páginas da História.
Alguém, cujo nome não ficou registrado, criou a fila autônoma. Esta fila não era para comprar ingressos, nem para entrar em lugar algum. Era uma fila para aqueles que gostavam de ficar em fila, àquela altura uma legião. Fez tal sucesso, que foi necessário vender ingressos para a dita fila. Um dia formou-se, diante da bilheteria, uma fila: era a fila para conseguir lugar na fila. E isto representou a consagração definitiva da fila como modo de vida.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.

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